segunda-feira, 15 de junho de 2020

Casernas de aluguel

Walter Benjamin



Não preciso explicar a vocês porque o tema de hoje está relacionado com Berlim. E receio também, que nem seja necessário descrever as casernas de aluguel para vocês. Pois todos vocês as conhecem. E a maioria as conhece também por dentro. Por dentro, eu me refiro aqui não só aos apartamentos e quartos, mas também aos pátios, três, quatro, cinco, ou até mesmo seis pátios dos fundos que as casernas de aluguel de Berlim possuem. Berlim é a cidade com o maior número dessas casernas em toda a Terra. E com isso ao poucos, com o passar dos séculos, veio a se tornar o nosso pesadelo - é o que tentarei explicar a vocês hoje.... Abram seus ouvidos, vocês já podem ouvir o que não se consegue aprender com tanta facilidade nas aulas de alemão, de geografia ou de moral e cívica, mas que para vocês pode ser importante. Pois todos vocês devem entender o que se quer dizer quando se fala da grande luta contra as casernas de aluguel, que a Grande Berlim começou a travar a partir de 1925.


 É costume falar que os berlinenses têm um forte espírito crítico. É verdade. Eles têm sempre uma resposta na ponta da língua, não se deixam iludir tão facilmente, são espertos. Mas no que se refere às casas e aos apartamentos nos quais eles vivem, aí é preciso dizer que eles têm-se deixado enganar ao
longo de séculos. E se no começo havia a desculpa da autoridade, ou do monarca absoluto que ordenava que se deveria construir assim ou assado, então mais tarde, quando chegaram a ter, eles mesmos, o poder de administrar sua cidade, a situação não melhorou nem um pouquinho, na verdade, até piorou. E tanto eles conseguiram com seu olhar e sutileza crítica, que raramente pensaram em colocá-lo em prática. E o que é o pior, enquanto de resto, em todo Império, os berlinenses são bastante criticados e há muito tempo já não são vistos como um modelo, no que se refere aos seus casarões, esses foram copiados em toda a Alemanha.

Casernas de aluguel - uma expressão que soa tão militar? (1) E não só a palavra tem origem neste vocabulário, mas o próprio surgimento da caserna de aluguel está intimamente ligado ao sistema militar. Desde os tempos dos Hohenzollern, (2) Berlim é uma cidade militar, e houve épocas em que os militares e suas famílias constituíam um terço de toda a população da cidade. Enquanto o exército prussiano não era tão numeroso, os soldados e seus familiares eram alojados nas casas dos cidadãos. Quando contei a vocês, duas semanas atrás, algumas coisas sobre a história da construção de Berlim durante o período de Frederico Guilherme I, vocês ouviram como cada cidadão era obrigado a alojar tantos ou tantos soldados em sua casa ou apartamento, conforme o tamanho da residência. Isso se deu sob o governo de Frederico Guilherme 1.



Para os cidadãos era algo extremamente sufocante, mas o exército ainda era pequeno, e tanto se construiu, que não se poderia falar em escassez de moradia. Quando Frederico Guilherme I morreu, Berlim tinha uma tropa de 19.000 homens. Quando, porém, Frederico o Grande morreu, em 1786, a tropa contava com 36.000 homens. Essa massa de soldados não poderia ser alojada da mesma forma como antigamente, por isso Frederico o Grande ordenou que se construísse um grande número de casernas, oito delas só nos últimos quatro anos de seu governo. Nestas casernas não moravam apenas os soldados, mas também suas famílias. Para nós parece algo bastante estranho que soldados tivessem que se alojar em casernas junto com suas esposas e filhos. Mas as razões para isso não são nem um pouco estranhas. Elas simplesmente são fruto da terrível crueldade da disciplina militar prussiana, que fazia com que muitos dos alistados desertassem na primeira oportunidade que se oferecia. Se os soldados tivessem permissão para passar todas as noites ou mesmo alguns dias da semana na casa de suas famílias, é bem possível que a metade não voltasse para o quartel na manhã seguinte. É por isso que eles eram mantidos junto às famílias nas casernas, de onde só podiam sair com autorização especial escrita. Para remediar a situação precária da moradia na cidade, Frederico o Grande estendeu à população civil de Berlim seu projeto de encasernamento. E diga-se, ao invés de fazer crescer a cidade em sentido horizontal, como havia feito seu pai, ele ampliou-a verticalmente. Para isso, escolheu Paris como modelo. Mas não havia qualquer motivo para isso. Paris era uma fortaleza, a cidade não podia se estender além da área dos fortes e bastiões, e como naquela época, sendo a maior cidade da Europa, tinha uma população de 150.000 habitantes, os parisienses não tinham outra solução a não ser construir prédios de vários andares. Berlim, porém, jamais tinha sido uma cidade fortificada, não era na época de Frederico o Grande assim como não o é hoje. A cidade poderia muito bem ter continuado a se expandir em sentido horizontal. Quando, naquela época, mostraram ao imperador da China pela primeira vez as imagens de casas construídas a uma altura tão incomum, ele disse com desdém:

A Europa deve ser um lugar muito pequeno, se seus habitantes não têm espaço suficiente para viver sobre a terra e precisam morar nos ares.

Para a saúde dos berlinenses, naturalmente, teria sido muito melhor manter o antigo estilo de construção, ao invés de amontoar em prédios o maior número de pessoas possível, como o que acabou acontecendo. Porém, mais graves ainda que os danos causados à saúde da população foram as consequências dessa arquitetura para a economia. A partir de Frederico o Grande, ninguém mais se preocupava em utilizar para construção os terrenos baratos que se situavam nos limites da cidade, mas em erguer nos terrenos já construídos, novos prédios, casernas de aluguel, ao invés das antigas residências familiares de dois andares. E como as casernas, com inúmeros inquilinos, traziam agora muito mais lucro aos proprietários do que as pequenas casas de antes, os terrenos se tornaram cada vez mais caros. Isso naturalmente logo veio a influenciar no preço dos terrenos não construídos, que havia em grande quantidade na cidade. Quando um terreno para construção era vendido, então os proprietários cobravam preços que o comprador só poderia pagar caso ele construísse vários apartamentos uns sobre os outros, seguindo o modelo das casernas, para que pudesse, com o aluguel, cobrir os juros embutidos nos preços altos do terreno.


Uma descrição de Berlim, datada do ano da morte de Frederico o Grande, mostra o tamanho do estrago. Mas, naturalmente, as consequências e danos trazidos por esta arquitetura só eram percebidos raramente, de forma que o autor desta descrição, o escritor Nicolai, nascido em Berlim, se mostra imensamente orgulhoso pelo fato de que quase metade dos prédios possui apartamentos laterais e de fundos, os quais, em algumas regiões da cidade, quase chegavam a abrigar mais moradores do que os apartamentos de frente. Em algumas casernas viviam cerca de 16 famílias. Em muito poucas cidades podem-se contar 6.500 residências com 145.000 moradores. Isto leva a uma média de 22 moradores por casa. Como isso nos soa inofensivo, hoje que encontramos em Berlim prédios com mais de 500 moradores. Cento e vinte anos após o relato de Nicolai, temos uma caserna com mais de mil pessoas na Ackerstrasse. O número é o 132, vocês podem ir até lá e conferir. Olhando de fora para a fileira de pátios, pensamos estar vendo um túnel. Na época de Nicolai a industrialização em Berlim estava apenas engatinhando. A verdadeira catástrofe veio bem mais tarde, após fracassarem todas as tentativas do Barão von Stein para ajudar os berlinenses por meio da política habitacional prussiana, quando em 1858 instituiu-se um terrível plano de urbanização que decretava o império das casernas. Precisamos dar uma olhada nesse plano para compreender a Berlim de hoje em dia. Segundo ele, a caserna de aluguel média deveria ter três pátios. Cada um destes pátios - por mais improvável que possa parecer - poderia se limitar a uma área de 5m2. Assim, a uma fachada de 20 metros correspondia uma profundidade de 56 metros. Com seus sete andares em média, incluindo aí o térreo, 650 pessoas poderiam se amontoar nestes casarões. Qualquer pessoa deve se perguntar com espanto, como puderam construir utilizando essas medidas tão nefastas, tão nocivas? A explicação é complicada e não muito saudável, assim como as casas. O ponto de partida foi algo completamente inofensivo. Um plano de urbanização deveria resolver de vez o problema de Berlim para as próximas décadas. Este plano foi elaborado na diretoria da polícia. Chegou-se ali à conclusão de que inúmeras vias deveriam atravessar terrenos que eram de propriedade privada. O Estado, empreendedor do plano, deveria indenizar os proprietários. Isto teria um preço muito alto, tendo em vista que ainda não havia na época uma lei de expropriação que previsse indenizações e também viesse atender o interesse público. Caso o Estado quisesse construir suas vias sem gastar um tostão, então teria que tentar negociar amigavelmente com os proprietários dos terrenos. Alguns funcionários espertalhões disseram então: vamos autorizar as pessoas a construir de uma forma que seus futuros inquilinos possam lhes dar mais lucros do que elas poderiam tirar com a venda dos pedacinhos de terra de que estamos precisando para abrir nossas ruas. Esta esperteza por si só seria o suficiente para causar a maior catástrofe. Mas algo pior ainda estava por vir. A forma como o plano foi realizado estava longe de ser aquilo que se havia pensado. Ele não previa nada além de grandes vias de circulação e deveria ser acrescido de uma malha de Vias secundárias, com ruas arejadas e bem iluminadas pelo sol. Mais tarde, porém, eles mudaram de opinião e, pensando em economizar o dinheiro com a abertura das ruas secundárias, acharam por bem entupir com uma quantidade enorme de casernas os terrenos cortados por umas poucas ruas. Mas o pior mesmo viria vinte anos mais tarde, quando a vitória sobre a França, em 1871, inaugurou o que se chamou os Anos de Fundação, quando a Alemanha inteira perdeu a cabeça e passou-se a especular a torto e a direito. As autoridades berlinenses sucumbiram então à megalomania. Elaboraram um plano de urbanização monstruoso que deveria valer por séculos, englobando progressivamente uma área na qual não menos que 21 milhões de pessoas poderiam se acomodar. A louca febre de especulação que abalou Berlim durante os Anos de Fundação e, como se sabe, terminou com a quebra de 1873, foi em boa parte uma consequência destes pretensiosos planos de expansão. De uma hora para outra os campos de trigo ou batata se transformaram em terrenos de construção, e em poucos meses o solo arenoso dos limites da idade havia se tornado o Eldorado de seus proprietários. Ao final dos anos 70, os camponeses, muitos dos quais tinham nascido na condição de servos, tornaram-se milionários da noite para o dia, sem realizar qualquer esforço, sem mérito nenhum. Daí vem a expressão, surgida nos Anos de Fundação, “camponeses-milionários”. Em toda parte criavam-se sociedades, compravam-se terrenos, especulava-se com eles, sem jamais ter a intenção de construir. Nesta época, nada era caro demais para as pessoas. E onde quer que se fosse construir, a única preocupação eram duas coisas: primeiro, amontoar sob o mesmo teto o maior número de acomodações possível e segundo, dar a tudo uma aparência luxuosa. Principalmente nos subúrbios, abriam-se ruas que iam de um extremo ao outro do bairro, ruas que se diziam luxuosas, mas que na verdade iam acabar num areal nos limites da cidade ou simplesmente numa rua adjacente. E até mesmo as mansões que eram erguidas não passavam de casernas disfarçadas, com seus cômodos no subsolo, seus dormitórios estreitos e suas áreas de serviço atrofiadas. Em compensação, as sala amplas e suntuosas davam para a rua, e mesmo se a rua era voltada para o norte, jamais recebiam sequer um raio de sol.



 
Até os anos da Primeira Guerra Mundial, o egoísmo, a miopia política e a presunção, que como vimos aqui, fizeram surgir as casernas de aluguel, foram o assunto do dia em quase toda parte de Berlim. Mas basta que vocês façam um passeio pelos arredores, até aos limites da cidade, para perceber que as coisas mudaram muito. E não apenas nos distintos bairros residenciais da parte ocidental, como o Dahlem e Lichterfelde, mas também em Frohnau junto à Stettiner Bahn, em Riidersdorf, ou mais próximo de Berlim, em Britz e Tempelhof. Particularmente Tempelhof é um exemplo daquilo que mudou para melhor em Berlim desde a revolução. (3)

Basta comparar as casas construídas entre 1912 e 1914 na área da antiga praça de manobras do exército com aquelas da cidade-jardim de Tempelhofer Felde, cada uma delas aninhada em meio à vegetação. Isto se torna mais evidente através das fotos tiradas de avião. Do alto pode-se ver bem melhor o quanto as casernas são tensas, duras, sombrias e de aspecto bélico, comparadas às casas pacíficas agrupadas amistosamente numa cidade-jardim.

 Cidade-jardim de Nova Tempelhof, 2008

E compreende-se então, por que Adolf Behne, que tanto fez pela nova Berlim, chamava a caserna de aluguel de o último castelo fortificado. Pois, ele diz, ela surgiu da luta brutal e egoísta de alguns proprietários de terrenos por uma terra que eles fatiaram e desmembraram. É daí que vem seu aspecto defensivo, bélico, com seus pátios cercados de muros, como uma fortaleza. Cada proprietário é dono de seu pedaço de isolamento hostil. E é num isolamento assim que normalmente vivem seus moradores, em blocos com centenas de apartamentos.

Casernas de aluguel em Berlin, vista aérea

Deem uma olhada na edição de abril da revista Uhu. Vocês verão ali uma nova concepção dos arranha-céus americanos. Longos blocos de prédios que podem ser dispostos ou lado a lado, elevando-se então nos ares, ou enfileirados, formando assim uma longa fileira de casas.


Revista Uhu, Abril de 1930

Fico pensando comigo, se esta edição da Uhu não seria uma brincadeira de primeiro de abril. Mas por esta brincadeira vocês podem ver claramente como se tenta impedir hoje em dia o avanço das casernas. Mais exatamente, eliminando a monumental e solene construção de pedra, que ao longo de séculos permanece imóvel e imutável. Estruturas finas de concreto ou de aço entram no lugar das pedras, imensas superfícies de vidro no lugar de paredes compactas e impenetráveis, escadas exteriores, varandas e terraços ajardinados surgem no lugar das quatro paredes velhas e impessoais. As pessoas que, cada vez mais, vão morar nessas casas terão suas vidas transformadas pouco a pouco por estes novos espaços. Elas serão mais livres, menos medrosas, mas também menos hostis. O mesmo entusiasmo que elas têm hoje pelos balões dirigíveis, pelos automóveis e transatlânticos, elas saberão demonstrar também pela imagem futura de uma cidade. E elas também serão agradecidas a todos que se empenharam na luta de libertação contra a antiga e sombria cidade-caserna que encerrava seus moradores como em uma fortaleza. Entre eles, um dos nomes mais importantes é Werner Hegemann, que em defesa desta nova Berlim escreveu uma história da cidade até os dias de hoje, um livro chamado “A Berlim de pedra”, e nos ensinou, a mim e a vocês, o que sabemos agora sobre a caserna de aluguel.


--
(1) No original, Mietskaserne, palavra composta pelo substantivo Kaserne (quartel) e o verbo mieten (alugar).

(2) Dinastia que governou as regiões de Brandenburgo e Prússia a partir de 1415, e mais tarde o Império Alemão, de 1871-ano da unificação alemã-até
1918.

(3) Benjamin refere-se à Revolução de 1918-1919, após o fim da Primeira Guerra Mundial, também chamada Revolução de Novembro, que apressou o
fim da monarquia alemã.

(4) Revista ilustrada publicada mensalmente em Berlim, de 1924 a 1934.

* Tradução de Alo Medeiros In: A hora das crianças. Narrativas radiofônicas de Walter Benjamin. Nau Editora, Rio de Janeiro, 2019.

Nenhum comentário:

Postar um comentário