quinta-feira, 26 de março de 2020

Crise do coronavírus: o colapso iminente


Tomasz Konicz
26.03.2020


O sistema capitalista mundial está a entrar na crise mais grave da sua história, cujas consequências – se não forem ultrapassadas rapidamente – podem deixar na sombra até mesmo a década de 1930.

Chegou novamente a hora do "nós" muito grande. Quando o capitalismo tardio, consumido pelas contradições internas, é tomado por outro surto de crise, surge então o momento de grandes apelos ao sentido do comum, à coesão e à disponibilidade para fazer sacrifícios. Todos os prisioneiros de uma sociedade profundamente dividida são igualmente chamados a fazer sacrifícios – do bilionário ao assalariado e ao sem-abrigo. Trata-se do grande e falso todo, quando inúmeros milhares de milhões têm de ser queimados para suportar um sistema destrutivo e irracional. Mas desta vez o sacrifício ao Mamon parece exigir, literalmente, sangue. O capitalismo é assim desmascarado como a religião secularizada que Walter Benjamin descreveu já em 1921.

Sangue para o deus sanguinário

Que tal o sacrifício da vida? É por uma boa causa, para a economia! É isso que eles estão realmente a discutir agora. Todos têm de fazer sacrifícios, Dan Patrick, vice-governador do Texas, exigiu recentemente aos seus cidadãos que todos fizessem sacrifícios. Afinal de contas, a economia tem de continuar a funcionar. Os assalariados deveriam, portanto, ir trabalhar apesar da pandemia, e os idosos, que morrem com mais frequência do que a média com o Coronavírus, deveriam simplesmente ser sacrificados para que os netos possam continuar a trabalhar – exigiu o vice-governador. Ele próprio estava preparado para dar a vida pela economia, afirmou Patrick, de 70 anos. O próprio Trump argumenta de forma semelhante, vendo o seu país "não ter sido feito para isso", para "permanecer fechado". Entretanto o presidente dos EUA fala em "reabrir" os EUA até à Páscoa.

Mas também na Alemanha há apelos para que a economia não seja arruinada por uma pandemia passageira. O Handelsblatt, por exemplo, lançou recentemente os excrementos do investidor Alexander Dibelius (McKinsey, Goldman Sachs) em forma de artigo, também defendendo que as rodas têm de voltar a rolar: "Mais vale uma gripe do que uma economia quebrada". É precisamente em frases cínicas como estas, que na verdade só chegam aos holofotes da opinião publicada em tempos de crise, que o irracionalismo do modo de produção capitalista, que ameaça a civilização, é claramente evidente. O capital é o fim em si mesmo de um movimento de valorização sem limites, um fim em si mesmo ao qual tudo pode ser realmente sacrificado.

Tais apelos ao puro sacrifício de sangue pelo capital deixam claro o quão dramática é a situação. O atual surto de crise é muito mais forte do que a crise de 2008/09, e parece que o sistema pode realmente entrar em colapso no caso de uma pandemia prolongada devido às suas crescentes contradições internas – embora a política faça tudo "bem" a partir de uma perspectiva capitalista interna de mero combate à crise. O Coronavírus é apenas o gatilho que ameaça derrubar um sistema instável.

Economia em queda livre

A única questão agora é se as próximas recessões serão piores do que a enorme quebra em 2009, quando a economia global entrou em queda após o estouro das bolhas imobiliárias nos EUA e na UE, que só pôde ser amortecida por gigantescos pacotes de estímulo económico e emissão maciça de dinheiro. Desta vez, o choque primário vem do rápido colapso da demanda, das interrupções na produção e da ruptura das cadeias de abastecimento globais existentes – e tem o potencial de desencadear uma contração historicamente sem precedentes no produto interno bruto (PIB) dos países no centro do sistema mundial capitalista tardio.

Mory Obstfeld, ex-chefe do FMI, comparou recentemente a contração da economia agora em curso com as consequências da Grande Depressão da década de 1930. A gravidade da desaceleração econômica fez das previsões correspondentes uma perda de tempo a uma velocidade recorde. O segundo trimestre de 2020 pode ver a pior queda nos EUA desde 1947; segundo o JPMorgan Chase & Co., há uma ameaça de contração de 14% em comparação com o mesmo período do ano passado, o Bank of America prevê agora uma queda de 12%, enquanto o Goldman Sachs espera mesmo uma queda catastrófica de 24% para os próximos três meses.

O aviso mais gritante foi feito pelo Presidente do Banco da Reserva Federal de St. Louis, James Bullard, que teme uma queda no PIB de até 50% no final do segundo trimestre, em comparação com o primeiro trimestre de 2020. Isso faria com que a taxa de desemprego disparasse até 30% e corresponderia a uma queda de 25% na produção económica. A título de comparação: durante a Grande Depressão de 1929-33, que mergulhou de largos sectores da população na pobreza extrema, o PIB dos EUA caiu 25% no seu conjunto.

O fator decisivo aqui é o tempo: quanto mais tempo se leva a combater a pandemia, mais longo é o processo de paralisação da valorização do capital na indústria produtora de mercadorias, maior a probabilidade de uma depressão duradoura, o que tornaria uma grande parte dos assalariados economicamente "supérfluos" – mergulhando-os na miséria que ameaçaria a sua existência. A menos que o vírus "tome um rumo milagroso e desapareça nos próximos meses", disse aos media o professor James Stock, de Harvard, será "como a Grande Depressão". Na Califórnia, os presságios desta iminente catástrofe social já se fazem sentir: desde 13 de março, ou seja, no prazo de uma semana, cerca de um milhão de assalariados já se inscreveram como desempregados.
Os apelos absurdos mencionados no início para voltar ao trabalho, apesar da pandemia, e para se sacrificar em nome do deus-dinheiro, são levados precisamente por essa visão da compulsão fetichista da valorização sem limites do capital. Caso contrário, está ameaçada de colapso uma sociedade capitalista que só pode reproduzir-se socialmente se os processos de acumulação forem bem sucedidos. A produção de uma humanidade economicamente supérflua resultante da crise sistêmica do capital, que se está a desenrolar por fases e que até agora tem sido largamente transmitida aos assalariados da periferia no decurso da concorrência de crise, também atingiria consequentemente os centros com toda a força se o combate à pandemia durasse muito tempo. "Nós" simplesmente não podemos oferecer proteção contra a pandemia dentro do quadro das coerções capitalistas.

Também na UE, o grande afinamento das perspectivas econômicas já começou. A Comissão da UE assumiu inicialmente que o PIB da União Europeia iria cair 1,0%. Mas agora também estão a ser esboçados paralelos em Bruxelas com o ano de 2009. Espera-se que a economia da UE encolha em 2020 em grau semelhante ao que ocorreu após o estouro das bolhas imobiliárias durante o último surto de crise que levou à interminável crise do euro: naquela época, a contração da produção econômica foi de 4,5% na zona euro e 4,3% na UE. A repetidamente sacudida aliança europeia de Estados, já em erosão, deve dar um novo impulso às forças centrífugas nacionalistas, particularmente na área monetária. Uma verdadeira mentalidade de saqueador já está a fazer incursões na "União" Europeia, onde máscaras cirúrgicas destinadas à Itália "desaparecem" repentinamente na Alemanha ou são simplesmente confiscadas pela Polônia e pela República Checa num ato de latrocínio de Estado.

O pior cenário para a República Federal da Alemanha pressupõe uma queda de 20% na produção econômica, o que causará um aumento do desemprego de um milhão de assalariados. A previsão do famigerado Instituto Ifo, com sede em Munique, é de uma forte queda do PIB de 7,2% em 2020 no melhor cenário: "Os custos provavelmente ultrapassarão qualquer coisa conhecida de crises econômicas ou desastres naturais na Alemanha nas últimas décadas", advertiu o chefe do Ifo, Fuest. Dependendo do cenário, a crise custaria entre 255 e 729 mil milhões de euros. Da mesmo modo, o chefe do Bundesbank, Weidmann, argumentou que uma deriva "para uma recessão pronunciada" era inevitável. As consequências destas quedas econômicas já estão a ser muitas vezes sentidas pelos assalariados: a VW colocou cerca de 80.000 trabalhadores em horário reduzido devido ao colapso da procura e à ruptura das cadeias de abastecimento.

As previsões globais iniciais, como as do FMI, também têm uma visão negativa do desenvolvimento económico, e também aqui se estabelecem paralelos com o crash de 2008. No entanto, a economia global é largamente dependente da China, onde os relatórios iniciais indicam que a produção já está a aumentar de novo. Isto poderia mitigar o crash global, mas o capitalismo de comando chinês, com o cunho de oligarquia estatal, não pode desempenhar o papel de locomotiva econômica global, já que a China também está a sofrer com o peso das altas montanhas de dívidas. Além disso, a dependência da "República Popular" dos mercados de exportação ainda é muito forte, apesar de todos os sucessos parciais no fortalecimento da demanda interna.

No decrépita terra dos milhões de fantasia

Em vista deste colapso iminente da produção econômica nos países centrais do sistema capitalista mundial, não é surpreendente que os políticos estejam agora a lidar de forma muito aberta com montantes de bilhões. Estão a ser bombeados para o sistema a uma velocidade insana, como se não houvesse amanhã. As elites funcionais políticas estão realmente preocupadas em evitar o colapso. E permanece completamente em aberto se esses esforços podem prolongar a agonia do capital, criando novas bolhas, como fizeram quando as bolhas imobiliárias explodiram em 2008/09.

As dimensões das medidas de apoio são historicamente únicas – especialmente nos EUA. Na quarta-feira, democratas e republicanos concordaram no Congresso para um pacote de estímulo de 2 biliões de dólares (são 2 milhões de milhões!). O dinheiro de helicóptero, ou seja, o pagamento de dinheiro aos cidadãos para estimular a procura, tornou-se uma realidade nos EUA. Cada cidadão americano com uma renda anual inferior a 75.000 dólares recebe uma doação em dinheiro de 1.200 dólares, cada filho traz um adicional de 500 dólares. Para a "indústria da saúde" disfuncional e privada, serão 100 mil milhões, os pequenos empresários podem contar com 350 mil milhões, à grande indústria serão lançados 500 mil milhões para mantê-la viva, 150 mil milhões são destinados a cidades e municípios, etc.

Na UE e na RFA, todas as medidas de austeridade impostas por Schäuble & Co. à área monetária serão levantadas, enquanto o BCE anunciou um gigantesco programa de compra de títulos de 750 mil milhões de euros, a fim de, indiretamente, através do mercado de capitais, levar a cabo o que é, na realidade, o financiamento estatal que foi proibido aos antigos – e futuros – países em crise na zona euro. Entretanto, a UE flexibilizou as regras orçamentais dos Estados da zona euro, a fim de promover os investimentos estatais financiados pelo crédito, que são possíveis graças à inundação de dinheiro do BCE. Os travões da dívida de Schaubler estão suspensos na UE, bem como na RFA. Entretanto, o ministro da Economia, Peter Altmaier, disse estar disposto a considerar "medidas não convencionais", como cheques para o consumo, depois de ter anunciado recentemente a nacionalização de empresas para as proteger de aquisições estrangeiras.

Devido a anos de excedentes de exportação sob a política alemã Begger-thy-Neighbor [empobrece o teu vizinho], a República Federal está de facto em condições de lançar programas de estímulo econômico maciço que – em relação à produção econômica – pode certamente acompanhar o ritmo da gigantomania americana. Berlim está a mobilizar um total de cerca de 750 mil milhões de euros para amortecer o impacto econômico, acompanhado de novos empréstimos de cerca de 156 mil milhões. Esta dívida adicional deve ser usada para financiar todas as medidas sociais, injeções financeiras adicionais para as infra-estruturas em dificuldades, tais como o sistema de saúde destruído, e ajuda às empresas e aos trabalhadores independentes. Cerca de 600 mil milhões estão destinados a proteger as grandes empresas e indústrias exportadoras alemãs da falência ou de aquisições hostis através da nacionalização ou de empréstimos governamentais.

Esses milhares de milhões tornam-se insignificantes em relação aos bilhões que os bancos centrais devem bombear para os mercados financeiros em retração, a fim de evitar o colapso do sistema financeiro global. A principal preocupação aqui é evitar o estouro da bolha de liquidez que foi iniciada pelas medidas tomadas para combater as consequências do estouro das bolhas imobiliárias em 2008/09. São precisamente estas bolhas do mercado financeiro (bolha dot-com, bolha imobiliária, bolha de liquidez atual) ,que têm vindo a aumentar desde a segunda metade dos anos 90 e que continuam em expansão, que geram a montanha cada vez maior da dívida, representando agora 322 por cento do produto econômico global, sob a qual o sistema global hiperprodutivo, dependente da procura impulsionada pelo crédito, ameaça entrar em colapso.

As medidas em pânico de biliões dos bancos centrais servem para salvar esta gigantesca torre de dívida do colapso. Incluem os 750 mil milhões em novas aquisições de obrigações pelo BCE, bem como as medidas num total de 1,5 bilhões de dólares que a Reserva Federal norte-americana tomou num esforço para inverter o colapso dos mercados bolsistas norte-americanos. Em última análise, trata-se da emissão monetária, conhecida como "flexibilização quantitativa", que é realizada na esfera financeira através da compra de obrigações e "títulos" dos bancos centrais, a fim de manter o sistema "líquido" (a subida dos preços dos títulos constitui o efeito inflacionário resultante). Entretanto, não há mais limites oficiais no Fed: "ações agressivas" são necessárias, a flexibilização quantitativa – ou seja, a emissão de dinheiro – será realizada sem limites, declarou o Fed em 23 de março.

O céu é o limite – até ao grande surto de desvalorização que poderá começar em conjunto com o colapso econômico. O problema é precisamente que uma grande parte dessa montanha crescente de dívidas não pode mais ser honrada se a recessão durar mais tempo – especialmente no caso de empréstimos às empresas. O frágil castelo de cartas capitalista tardio nos mercados financeiros entraria então em colapso, com consequências desastrosas. Os primeiros cálculos do modelo correspondente levaram em conta a dívida das empresas de oito países – China, EUA, Japão, Grã-Bretanha, França, Espanha, Itália e Alemanha. No caso de um choque econômico que fosse apenas metade do da crise financeira global de 2008, o passivo no valor de 19 biliões de dólares americanos (19 milhões de milhões) não seria mais atendido. Isso representaria 40% do total da dívida das empresas nos países em questão. No entanto, em muitas regiões, a crise ameaça assemelhar-se à queda de 2009.
Assim, as quedas econômicas, que agora se pretende mitigar com bilhões, ameaçam interagir com a sucata financeira do inchado sistema financeiro global, o que resultaria na sua desvalorização e num colapso irreversível. Este é o perigo real da atual dinâmica da crise: o colapso da montanha da dívida global desencadearia um verdadeiro colapso. A casta política reconheceu isto corretamente, e é por isso que as comportas do Fed e do BCE estão agora a ser abertas até ao fim.

A exigência arcaica de sacrifícios para acalmar novamente os mercados, como mencionado no início, tem de facto um verdadeiro núcleo na coerção objetiva do capitalismo. Trump está certo. Se o controle pandêmico necessário for mantido por um longo período de tempo, os centros do sistema capitalista mundial estão literalmente ameaçados de colapso. A propósito, o anúncio de Trump de que os EUA voltariam às operações normais já na Páscoa, juntamente com o "pacote de estímulo econômico" que havia sido acordado, causou o maior salto das cotações nos mercados financeiros dos EUA desde 1933. O Baal do dinheiro aceita benignamente os sacrifícios humanos anunciados. Mesmo que centenas de milhares de pessoas possam morrer miseravelmente, o capital tem de voltar a ser valorizado através do trabalho assalariado. A natureza irracional do capitalismo como uma "louca seita suicida" (Robert Kurz), como um desenfreado culto de morte na compulsão cega ao crescimento, torna-se evidente em tais momentos de crise.

Mas a necessidade de ultrapassar emancipatoriamente este sistema que se afunda na dissolução e na barbárie, cujos apologistas se transformam em sumos sacerdotes deste culto da morte, também se torna evidente. Em última análise, é uma pura necessidade de sobrevivência encontrar formas de reprodução social para além da totalitária socialização do valor. Esta é a única exigência política razoável que deve agora ser formulada em resposta ao desastre que se está a desenrolar.

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Tomasz Konicz publicou recentemente o livro “Klimakiller Kapital. Wie ein Wirtschaftssystem unsere Lebensgrundlagen zerstört”. ["Klimakiller Kapital". Como um sistema econômico destrói as bases da nossa vida].

Original: Coronakrise: Der kommende Absturz. Publicado em Lower Class Magazine, 26.03.2020. Tradução de Boaventura Antunes

terça-feira, 24 de março de 2020

Coronavirus é um monstro abastecido pelo Capitalismo

Mike Davis

20 de março de 2020

Foto: Lilian Suwanrumpha / AFP


Coronavírus é o filme antigo que assistimos tantas vezes, pelo menos desde o livro de Richard Preston, de 1995, The Hot Zone, que nos apresentou o demônio exterminador, nascido em uma misteriosa caverna de morcegos na África Central, conhecida como Ebola. A primeira de uma sucessão de novas doenças em erupção no "campo virgem" (esse é o termo apropriado) do inexperiente sistema imunológico da humanidade. O ebola foi logo seguido pela gripe aviária, que atingiu seres humanos em 1997, e a SARS, que surgiu no final de 2002. Ambos os casos apareceram pela primeira vez em Guangdong, o centro fabril do mundo.

Hollywood, é claro, abraçou luxuriosamente esses surtos e produziu vários filmes para nos excitar e assustar. (Contágio, de Steven Soderbergh, lançado em 2011, destaca-se por sua ciência precisa e por sua estranha antecipação do caos atual). Além dos filmes e dos inúmeros romances sinistros, centenas de livros sérios e milhares de artigos científicos lidaram a cada surto, enfatizando o estado terrível de preparação global para detectar e responder a essas novas doenças.


Um novo monstro

Então o Corona entra pela porta da frente como um monstro familiar. Sequenciar seu genoma (muito semelhante à sua bem-estudada irmã SARS) foi um pedaço de bolo, mas muita informação ainda está faltando. Como os pesquisadores trabalham noite e dia para caracterizar o surto, enfrentando três grandes desafios. Primeiro, a escassez contínua de kits de teste, especialmente nos Estados Unidos e na África, impediu estimativas precisas de parâmetros-chave, como taxa de reprodução, tamanho da população infectada e número de infecções benignas. O resultado foi um caos de números.

Segundo, como as influenzas anuais, esse vírus sofre mutação à medida que percorre populações com diferentes composições etárias e condições de saúde. A variedade que os americanos provavelmente contrairão já é um pouco diferente daquela do surto original em Wuhan. Mutações adicionais podem ser benignas ou alterar a distribuição atual de virulência, que atinge acentuadamente indivíduos com mais de 50 anos. O coronavírus é no mínimo um perigo mortal para os americanos idosos, com sistema imunológico fraco ou problemas respiratórios crônicos.

Terceiro, mesmo que o vírus permaneça estável e pouco mutado, seu impacto nas faixas etárias mais jovens pode diferir radicalmente nos países pobres e entre os grupos de alta pobreza. Considere a experiência global da gripe espanhola em 1918-19, que estima-se ter matado entre 1 e 3% da população mundial. Nos Estados Unidos e Europa Ocidental, o H1N1 foi mais mortal para jovens adultos. Isso geralmente aconteceu devido aos seus sistemas imunológicos relativamente mais fortes, que reagiram exageradamente à infecção ao atacar células pulmonares, levando a pneumonia e choque séptico.

De qualquer forma, a gripe encontrou um nicho favorito nos campos do exército e nas trincheiras do campo de batalha, onde destruiu jovens soldados às dezenas de milhares. Isso se tornou um fator importante na batalha dos impérios. O colapso da grande ofensiva alemã de primavera de 1918 e, portanto, o resultado da guerra, foi atribuído por alguns ao fato de que os Aliados, em contraste com o inimigo, poderiam reabastecer seus exércitos doentes com tropas americanas recém-chegadas.

Mas a gripe espanhola nos países mais pobres tinha um perfil diferente. Raramente considera-se que uma grande proporção da mortalidade global tenha ocorrido na região do Punjab, Bombaim e outras partes do oeste da Índia, onde as exportações de grãos para a Grã-Bretanha e práticas brutais de expropriação coincidiram com uma grande seca. A escassez resultante de alimentos levou dezenas de pessoas pobres à beira da fome. Essa população se tornou vítima de uma sinergia sinistra entre desnutrição - que suprimia sua resposta imune à infecção e produzia bactérias desenfreadas - e a pneumonia viral.

Essa história - especialmente as consequências desconhecidas das interações entr a desnutrição e as infecções existentes - deve nos alertar para o fato de que o COVID-19 poderá seguir um caminho diferente e mais mortal nas favelas densas e adoentadas da África e do sul da Ásia. Com os casos agora aparecendo em Lagos, Kigali, Addis Abeba e Kinshasa, ninguém sabe (e não saberá há muito tempo por causa da ausência de testes) como ele pode interagir com as condições e doenças locais de saúde. Alguns afirmaram que, como a população urbana da África é a mais jovem do mundo, a pandemia terá apenas um impacto leve. À luz da experiência de 1918, essa é uma extrapolação tola. Assim como é tolo o pressuposto de que a pandemia, como a gripe sazonal, recua diante de climas mais quentes
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A herança da austeridade

Daqui a um ano, podemos admirar o sucesso da China em conter a pandemia, mas horrorizados com o fracasso dos Estados Unidos. A incapacidade de nossas instituições de manter a Caixa de Pandora fechada, é claro, dificilmente é uma surpresa. Desde pelo menos 2000, observamos repetidamente falhas na assistência médica de primeira linha.

As temporadas de gripe de 2009 e 2018, por exemplo, sobrecarregaram hospitais em todo o país, expondo a chocante escassez de leitos hospitalares após anos de cortes na capacidade de pacientes internados por lucros. A crise remonta à ofensiva corporativa que levou Ronald Reagan ao poder e converteu os principais democratas em seus porta-vozes neoliberais. Segundo a Associação Americana de Hospitais, o número de leitos hospitalares diminuiu extraordinariamente 39% entre 1981 e 1999. O objetivo era aumentar os lucros aumentando o "censo" (número de leitos ocupados). Mas a meta da gerência de 90% de ocupação significava que os hospitais não tinham mais capacidade de absorver o fluxo de pacientes durante epidemias e emergências médicas.

No novo século, a medicina de emergência continuou a ser reduzida no setor privado pelo imperativo do "valor do acionista" de aumentar os dividendos e lucros de curto prazo, e no setor público pela austeridade fiscal e reduções nos orçamentos emergenciais estaduais e federais. Como resultado, nos EUA existem apenas 45.000 leitos de UTIs disponíveis para lidar com a inundação projetada de casos sérios e críticos de Corona. (Em comparação, os sul-coreanos têm mais de três vezes mais camas disponíveis por mil pessoas do que os americanos.) Segundo uma investigação do USA Today “apenas oito estados teriam leitos hospitalares suficientes para tratar os 1 milhão de americanos com 60 anos ou mais que poderiam ficar doentes com COVID-19. "

Ao mesmo tempo, os republicanos repeliram todos os esforços para reconstruir as "redes de segurança" destruídas pelos cortes no orçamento da recessão de 2008. Os departamentos de saúde locais e estaduais - a primeira linha vital de defesa - hoje têm 25% menos funcionários do que antes da Segunda-Feira Negra, doze anos atrás. Além disso, na última década, o orçamento do CDC (
Centro de Controle e Prevenção de Doenças) caiu 10% em termos reais. Sob Trump, os déficits fiscais só foram exacerbados. O New York Times informou recentemente que "21% dos departamentos de saúde locais relataram reduções nos orçamentos para o ano fiscal de 2017". Trump também fechou o escritório de pandemia da Casa Branca, uma diretoria criada por Obama após o surto de Ebola de 2014 para garantir uma resposta nacional rápida e bem coordenada a novas epidemias.

Estamos nos estágios iniciais de uma versão médica do furacão Katrina. Após desinvestir na preparação médica de emergência, ao mesmo tempo em que toda opinião de especialistas recomendou uma grande expansão de capacidade, não temos suprimentos básicos de baixa tecnologia, nem respiradores e camas de emergência. Os estoques nacionais e regionais foram mantidos em níveis muito abaixo do indicado pelos modelos epidêmicos. Portanto, o desastre do kit de teste coincidiu com uma escassez crítica de equipamentos de proteção para os profissionais de saúde. Grupos de enfermeiras militantes, nossa consciência social nacional, estão fazendo questão de nos fazer entender os graves perigos criados por estoques inadequados de suprimentos de proteção, como as máscaras faciais do N95. Eles também nos lembram que os hospitais se tornaram estufas para superbactérias resistentes a antibióticos, como S. aureus e C. difficile, que podem se tornar grandes assassinos secundários em enfermarias superlotadas.
 


Uma crise desigua

O surto expôs instantaneamente a forte divisão de classe na assistência médica americana. Aqueles com bons planos de saúde que também podem trabalhar ou ensinar em casa ficam confortavelmente isolados, desde que sigam salvaguardas prudentes. Funcionários públicos e outros grupos de trabalhadores sindicalizados com cobertura decente terão que fazer escolhas difíceis entre renda e proteção. Enquanto isso, milhões de trabalhadores com baixos salários, trabalhadores rurais, desempregados e sem-teto estão sendo jogados para os lobos.

Como todos sabemos, a cobertura universal, em qualquer sentido significativo, requer provisão universal para dias pagos por doença. Atualmente, um total de 45% da força de trabalho não tem o direito e é praticamente obrigado a transmitir a infecção ou servir para si um prato vazio. Da mesma forma, 14 estados se recusaram a aprovar a aprovação da Lei de Assistência Acessível, que expande o Medicaid para os trabalhadores pobres. É por isso que quase um em cada cinco texanos, por exemplo, carece de cobertura.

As contradições mortais dos cuidados de saúde privados em tempos de praga são mais visíveis no setor de "casas de repouso" com fins lucrativos, que armazena 1,5 milhão de idosos americanos, a maioria deles no Medicare. É uma indústria altamente competitiva, capitalizada com baixos salários, pessoal insuficiente e corte ilegal de custos. Dezenas de milhares de pessoas morrem todos os anos devido à negligência dos procedimentos básicos de controle de infecções pelas instituições de cuidados de longo prazo e à falha dos governos em responsabilizar a gerência pelo que só pode ser descrito como homicídio culposo. Muitas dessas casas acham mais barato pagar multas por violações sanitárias do que contratar pessoal adicional e fornecer treinamento adequado.

Não surpreende que o primeiro epicentro da transmissão comunitária tenha sido o Life Care Center, um lar de idosos no subúrbio de Kirkland, em Seattle. Falei com Jim Straub, um velho amigo que é organizador de sindicatos nos lares de idosos da área de Seattle. Ele caracterizou a instalação como "uma das pior equipadas do estado" e todo o sistema de casas de repouso de Washington "como a mais subfinanciada do país - um oásis absurdo de sofrimento austero em um mar de dinheiro tecnológico".

Straub apontou que as autoridades de saúde pública estavam ignorando o fator crucial que explica a transmissão rápida da doença do Life Care Center para nove outros lares próximos: “Todos os trabalhadores de lares de idosos no mercado de aluguel mais caro da América trabalham em vários empregos, em geral em diversos asilos." Ele diz que as autoridades falharam em descobrir os nomes e os locais desses segundos empregos e, portanto, perderam todo o controle sobre a disseminação do COVID-19.

Em todo o país, muitos outros lares de idosos se tornarão pontos centrais para disseminação do coronavírus. Muitos trabalhadores acabam escolhendo o banco de alimentos em vez de trabalhar nessas condições e acabam ficando em casa. Nesse caso, o sistema pode entrar em colapso - e não devemos esperar que a Guarda Nacional esvazie os urinóis.




O caminho à frente

A pandemia, a cada passo de seu avanço mortal, demonstra a importância da cobertura universal de saúde e das férias remuneradas. Enquanto Joe Biden provavelmente enfrentará Trump nas eleições gerais, os progressistas devem se unir, como Bernie Sanders propõe, para ganhar o Medicare for All. Os delegados combinados de Sanders e Warren têm um papel a desempenhar na Convenção Nacional Democrática de Milwaukee em julho, mas o resto de nós tem um papel igualmente importante nas ruas, começando agora com as lutas contra despejos, demissões e empregadores que recusam compensação por trabalhadores de licença.

Mas a cobertura universal e as demandas associadas são apenas um primeiro passo. É decepcionante que, nos debates primários, Sanders e Warren não tenham destacado a abdicação da Big Pharma da pesquisa e desenvolvimento de novos antibióticos e antivirais. Das 18 maiores empresas farmacêuticas, 15 abandonaram totalmente o campo. Medicamentos para o coração, tranquilizantes viciantes e tratamentos para a impotência masculina são líderes em lucros, não as defesas contra infecções hospitalares, doenças emergentes e assassinos tropicais tradicionais. Uma vacina universal para a gripe - ou seja, uma vacina que atinge as partes imutáveis ​​das proteínas de superfície do vírus - é uma possibilidade há décadas, mas nunca considerada lucrativa o suficiente para ser uma prioridade.

À medida que a revolução dos antibióticos é revertida, as doenças antigas reaparecem junto com novas infecções e os hospitais se tornam casas de carvão. Até Trump pode oportunamente opor-se a custos absurdos de receita médica, mas precisamos de uma visão mais ousada que busque romper os monopólios de drogas e proporcionar a produção pública de remédios para salvação. (Esse costumava ser o caso: durante a Segunda Guerra Mundial, Jonas Salk e outros pesquisadores foram recrutados para desenvolver a primeira vacina contra a gripe.) Como escrevi quinze anos atrás, em meu livro O Monstro à Nossa Porta - A Ameaça Global da Gripe Aviária:
 


"O acesso aos medicamentos da linha da vida, incluindo vacinas, antibióticos e antivirais, deve ser um direito humano, universalmente disponível sem nenhum custo. Se os mercados não puderem oferecer incentivos para produzir esses medicamentos de maneira barata, os governos e organizações sem fins lucrativos devem assumir a responsabilidade por sua fabricação e distribuição. A sobrevivência dos pobres deve ser sempre considerada uma prioridade mais alta do que os lucros da Big Pharma."
 A pandemia atual expande o argumento: a globalização capitalista agora parece biologicamente insustentável na ausência de uma infraestrutura de saúde pública verdadeiramente internacional. Mas essa infraestrutura nunca existirá até que os movimentos das pessoas quebrem o poder da Big Pharma e da assistência médica com fins lucrativos.

Isso requer um desenho socialista independente para a sobrevivência humana que inclui - mas vai além - um Segundo New Deal. Desde os dias do Occupy, os progressistas colocaram com sucesso a luta contra a desigualdade de renda e riqueza na página um - uma grande conquista. Mas agora os socialistas devem dar o próximo passo e, com as indústrias de saúde e farmacêutica como alvos imediatos, advogar a propriedade social e a democratização do poder econômico.

Também devemos fazer uma avaliação honesta de nossas fraquezas políticas e morais. A evolução para a esquerda de uma nova geração e o retorno da palavra 'socialismo' ao discurso político nos alegra a todos, mas há um elemento perturbador do solipsismo nacional no movimento progressista que é simétrico ao novo nacionalismo. Falamos apenas sobre a classe trabalhadora americana e a história radical da América (talvez esquecendo que Eugene V. Debs era um internacionalista em sua essência).

Ao abordar a pandemia, os socialistas devem encontrar todas as ocasiões para lembrar aos outros a urgência da solidariedade internacional. Concretamente, precisamos agitar nossos amigos progressistas e seus ídolos políticos para exigir uma expansão maciça da produção de kits de teste, suprimentos de proteção e remédios essenciais para distribuição gratuita nos países pobres. Cabe a nós garantir que a garantia de assistência médica universal e de alta qualidade se torne política externa e doméstica.


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Original publicado em 20 de Março de 2020 em:
http://inthesetimes.com/article/22394/coronavirus-crisis-capitalism-covid-19-monster-mike-davis

10 Teses sobre Agronegócio e Doenças


Rob Wallace




1. Agricultores em todo o mundo estão sob pressão. Ao mesmo tempo em que enfrentam custos crescentes nos insumos, veem os preços baixos ou decrescentes de seus produtos no portão da fazenda. Os produtores rurais são cada vez mais forçados a perseguir uma rainha vermelha econômica - ou seja, É preciso correr o máximo possível, para permanecermos no mesmo lugar. Produtores individuais devem aumentar sua produção somente se em um esforço para cobrir os preços baixos contribuiu para a deprimir o aumento da produção nas fazendas.


2. Tal pressão uma farsa que o agronegócio impõe contra os agricultores. Ao reforçar a alta produção agrícola, as empresas estão buscando excedentes que barateiem os ingredientes para suas linhas de produtos processados. Alto produção, produzindo alimentos além da demanda global do consumidor, também significa ganhar dinheiro com agricultores contratualmente obrigados a comprar insumos sintéticos que, de outra maneira, não seriam necessários.

3. O intervalo entre custo e preço, também uma forma de disciplina trabalhista, força a dispensa de muitos agricultores, levando a formação de conluios, à medida que os pequenos proprietários e as operações de nível médio ainda compram terras abandonadas, apostando em economias de escala, mecanização financiada por dívidas e valorização do preço da terra para comandá-los através da pressão artificial de preços.

4. Os aumentos resultantes no tamanho e na dívida da fazenda, os declínios na diversidade de culturas e gado e o alongamento das cadeias de mercadorias nas geografias da produção de alimentos, hoje em expansão, deprimem a resiliência rural aos surtos de doenças associados à produção agrícola. Por suas imensas monoculturas, os produtores de carne e de cereais também estão industrializando pragas e patógenos, aumentando a frequência, a escala e a mortalidade dos surtos. Em suma, a produção industrial oferece menos proteção contra um crescente risco epidemiológico de sua própria fabricação.
 5. Nesse sistema, controlar surtos significa proteger, em primeiro lugar, proteger o modelo econômico, que gera tanto dinheiro para o agronegócio. As práticas agrícolas reais, como a comida é cultivada na paisagem, podem mudar apenas na medida em que contribuam para novas maneiras de expropriar o agricultor. Isso significa que mesmo os problemas da produção do agronegócio, inclusive as doenças, se tornam apenas outra maneira de ganhar dinheiro com os agricultores.
6. Os compradores corporativos no portão da fazenda exigem que os produtores controlem os surtos que surgem inevitavelmente da produção de monocultura com pesticidas e produtos farmacêuticos vendidos por empresas químicas e farmacêuticas. Nenhuma solução - digamos, diversificação agroecológica ou mosaicismo regional - deve ser buscada fora das mercadorias ditadas pelas empresas que compram os produtos.

7. Pragas, patógenos agrícolas - muitas doenças de animais e aves são capazes de se espalhar para as populações humanas - não se preocupam em cooperar com esse arranjo. Eles não leem memorandos da empresa ou respeitam os ganhos trimestrais. Isso não quer dizer que eles não gostem do modelo de monocultura global. De fato, com o perdão do antropomorfismo, uma grande variedade de agentes de doenças prosperará com ele. O modelo de negócios ajuda muitos patógenos e pragas a se espalharem por todo o mundo, atendendo a novos hospedeiros em potencial que muitas vezes não teriam evoluido com maior infecciosidade e mortalidade.

8. Portanto, a única maneira de impedir que a próxima pandemia mortal surja diretamente do gado ou das aves domésticas ou indiretamente dos animais selvagens submetidos ao desmatamento impulsionado pela Grande Agricultura é acabar com o agronegócio capitalista como o conhecemos.

9. A propriedade da terra, o estado de autonomia do agricultor e o controle que as comunidades locais podem exercer sobre a configuração de paisagens alimentares estão fundamentalmente ligados aos destinos epidemiológicos de nossas doenças mais mortais. Se queremos evitar que a próxima pandemia, a próxima gripe aviária ou Ebola ou o vírus Nipah, mate um bilhão de pessoas, a agricultura deve ser devolvida aos agricultores e seus apoiadores locais, tanto no nível de uma fazenda individual quanto como uma empresa coletiva por meio de paisagens diversificadas.

10. Relações de confiança públicas e modelos de cooperação organizados em torno de agroecologias multifuncionais que atendem às necessidades de alimentos, agricultores e meio ambiente são a nossa melhor proteção contra a pior das novas doenças.


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Original em: https://farmingpathogens.wordpress.com/2017/06/06/ten-theses/?theme_preview=true&iframe=true&frame-nonce=8194e23716 Tradução:  Allan Cob - allancob@gmail.com

domingo, 22 de março de 2020

Política anticapitalista na época do COVID-19

David Harvey

Como argumenta o geógrafo marxista David Harvey, quarenta anos de neoliberalismo deixaram a população totalmente exposta e mal preparada para enfrentar uma crise de saúde pública na escala do coronavírus. As únicas políticas que podem funcionar globalmente terão que vir dos EUA e são muito mais socialistas do que as propostas de Bernie Sanders.



Ao tentar interpretar, entender e analisar o fluxo diário de notícias, tenho a tendência de localizar o que está acontecendo em dois cenários distintos, mas interligados, de como o capitalismo funciona. O primeiro cenário é um mapeamento das contradições internas da circulação e acumulação de capital, à medida que o valor monetário flui em busca de lucro através dos diferentes “momentos” (como Karl Marx os chama) de produção, realização (consumo), distribuição e reinvestimento. Este é o arranjo da economia capitalista como uma espiral de expansão e crescimento sem fim. Fica mais complicado à medida que é analisado, por exemplo, através das rivalidades geopolíticas, desenvolvimentos geográficos desiguais, instituições financeiras, políticas estatais, reconfigurações tecnológicas e a rede em constante mudança de divisões do trabalho e relações sociais.

Eu imagino esse modelo incorporado, no entanto, em um contexto mais amplo de reprodução social (em lares e comunidades), em uma relação metabólica contínua e em constante evolução com a natureza (incluindo a “segunda natureza” da urbanização e do ambiente) e todas maneira de formações culturais, científicas (baseadas no conhecimento), religiosas e sociais contingentes que as populações normalmente criam no espaço e no tempo. Esses últimos “momentos” incorporam a expressão ativa das vontades, necessidades e desejos humanos, o desejo de conhecimento e significado e a busca pela realização em um cenário de mudanças nos arranjos institucionais, nas disputas políticas, nos confrontos ideológicos, nas perdas, nas derrotas, nas frustrações e alienações, todas elaboradas em um mundo de acentuada diversidade geográfica, cultural, social e política. Esse segundo cenário constitui, por assim dizer, minha compreensão prática do capitalismo global como uma formação social distinta, enquanto o cenário é sobre as contradições dentro do mecanismo econômico que alimenta essa formação social ao longo de certos caminhos dentro da sua evolução histórica e geográfica.

Espiral produtiva

Quando, em 26 de janeiro de 2020, li pela primeira vez sobre o coronavírus ganhando espaço na China, pensei imediatamente nas repercussões para a dinâmica global da acumulação de capital. Eu sabia dos meus estudos sobre o modelo econômico que bloqueios e interrupções na continuidade do fluxo de capital resultariam em desvalorizações e que, se as desvalorizações se tornassem generalizadas e profundas, isso sinalizaria o início de crises. Eu também estava ciente de que a China é a segunda maior economia do mundo e que, na prática, resgatou o capitalismo global no período pós-2007–8. Portanto, qualquer impacto na economia chinesa provavelmente teria sérias consequências para uma economia global que já estava em péssima condição.

Pareceu-me que o modelo existente de acumulação de capital já estava com muitos problemas. Movimentos e protesto estavam ocorrendo em quase todos os lugares (de Santiago a Beirute), muitos focados no fato de que o modelo econômico dominante não estava funcionando bem para a maioria da população. Esse modelo neoliberal repousa cada vez mais no capital fictício e em uma vasta expansão na oferta de moeda e na criação de dívida. Entretanto, já está enfrentando o problema da demanda por ser insuficiente para realizar os valores que o capital é capaz de produzir.

Como o modelo econômico dominante, com sua legitimidade decadente e saúde delicada, será que ele pode absorver e sobreviver aos impactos inevitáveis ​​de uma pandemia? A resposta dependia fortemente de quanto tempo a interrupção poderia durar e se espalhar, pois, como Marx apontou, a desvalorização não ocorre porque as mercadorias não podem ser vendidas, mas porque não podem ser vendidas a tempo.

Há muito que recusei a ideia de que a “natureza” estivesse fora e separada da cultura, economia e vida cotidiana. Adoto uma visão mais dialética e relacional da relação metabólica com a natureza. O capital modifica as condições ambientais de sua própria reprodução, mas o faz em um contexto de conseqüências não intencionais (como as mudanças climáticas) e no contexto de forças evolutivas autônomas e independentes que estão remodelando perpetuamente as condições ambientais. Deste ponto de vista, não existe um desastre verdadeiramente natural. Os vírus sofrem mutação o tempo todo para ter certeza. Mas as circunstâncias em que uma mutação se torna ameaçadora e fatal dependem das ações humanas.

Existem dois aspectos relevantes para isso. Primeiro, condições ambientais favoráveis ​​aumentam a probabilidade de mutações vigorosas. Por exemplo, é plausível esperar que sistemas de suprimento de alimentos nos subtrópicos úmidos possam contribuir para isso. Tais sistemas existem em muitos lugares, incluindo na China ao sul do Yangtse e o Sudeste Asiático. Em segundo lugar, as condições que favorecem a transmissão rápida através dos organismos hospedeiros variam muito. Populações de alta densidade pareceriam um alvo fácil para o hospedeiro. É sabido que as epidemias de sarampo, por exemplo, apenas florescem em grandes centros populacionais urbanos, mas morrem rapidamente em regiões pouco populosas.

Conforme os seres humanos interagem, se movimentam, se disciplinam ou esquecem de lavar as mãos, as formas como as doenças são transmitidas são afetadas. Nos últimos tempos, a SARS, a gripe aviária e suína parecem ter saído da China ou do Sudeste Asiático. A China também sofreu muito com a peste suína no ano passado, implicando no abate em massa de porcos e o aumento dos preços da carne suína. Não digo tudo isso para indiciar a China. Existem muitos outros lugares onde os riscos ambientais para mutação e difusão viral são altos. A gripe espanhola de 1918 pode ter saído do Kansas e a África pode ter incubado o HIV / AIDS e certamente iniciado o Nilo Ocidental e o Ebola, enquanto a dengue parece florescer na América Latina. Mas os impactos econômicos e demográficos da propagação do vírus dependem de fendas e vulnerabilidades preexistentes no modelo econômico hegemônico.
Não fiquei indevidamente surpreso que o COVID-19 tenha sido encontrado inicialmente em Wuhan (embora não seja conhecido onde ele se originou). Claramente, os efeitos locais são substanciais e, dado que lá era um centro de produção sério, provavelmente haveria repercussões econômicas globais (embora eu não tivesse idéia desta magnitude). A grande questão era como o contágio e a difusão poderiam ocorrer e quanto tempo duraria (até que uma vacina pudesse ser encontrada). Experiências anteriores haviam mostrado que uma das desvantagens do aumento da globalização é como é impossível impedir uma rápida difusão internacional de novas doenças. Vivemos em um mundo altamente conectado, onde quase todo mundo viaja. As redes humanas para potencial difusão são vastas e abertas. O perigo (econômico e demográfico) era que a interrupção durasse um ano ou mais.

Embora houvesse uma queda imediata nos mercados financeiros quando as notícias iniciais foram divulgadas, foi impressionante como os mercados atingiram novos picos no mês seguinte. As notícias pareciam indicar que os negócios estavam normais em todos os lugares, exceto na China. Acreditavam que iríamos experimentar uma reprise da SARS que acabou sendo contida rapidamente e manteve um baixo impacto global, apesar de ter uma alta taxa de mortalidade e criar um pânico desnecessário (em retrospecto) nos mercados financeiros. Quando o COVID-19 apareceu, a reação dominante foi descrevê-lo como uma repetição da SARS, tornando o pânico redundante. O fato de a epidemia ter ocorrido na China, que rapida e implacavelmente se moveu para conter seus impactos, também levou o resto do mundo a tratar erroneamente o problema como algo acontecendo “lá” e, portanto, fora do horizonte (acompanhada por alguns problemas que sinalizam uma visão de xenofobia anti-chinesa em certas partes do mundo). O pico que o vírus colocou na história triunfante do crescimento chinês foi recebido com alegria em certos círculos do governo Trump.

No entanto, histórias de interrupções nas cadeias produtivas globais que passavam por Wuhan começaram a circular no noticiário. Estes foram amplamente ignorados ou tratados como problemas pontuais para determinados produtos ou corporações (como a Apple). As desvalorizações foram locais e particulares e não sistêmicas. Os sinais de queda na demanda do consumidor também foram minimizados, embora empresas como McDonald’s e Starbucks, que tinham grandes operações no mercado interno chinês, precisassem fechar suas portas por um tempo. A sobreposição do Ano Novo Chinês com o surto do vírus mascarou os impactos ao longo de janeiro. A complacência dessa resposta foi mal interpretada.

As notícias iniciais sobre a disseminação internacional do vírus foram ocasionais e episódicas, com um surto grave na Coréia do Sul e em alguns outros pontos críticos como o Irã. Foi o surto italiano que desencadeou a primeira reação mais violenta. O colapso do mercado financeiro, que começou em meados de fevereiro, oscilou um pouco, mas em meados de março levou a uma desvalorização líquida de quase 30% nas bolsas de valores do mundo todo.
A escalada exponencial das infecções provocou uma série de respostas muitas vezes incoerentes e às vezes em pânico. O presidente Donald Trump fez uma imitação do rei Canute diante de uma potencial maré crescente de doenças e mortes. Algumas das respostas parecem estranhas. Ter o Federal Reserve com taxas de juros mais baixas diante de um vírus parecia estranho, mesmo quando se reconheceu que a medida pretendia aliviar os impactos do mercado em vez de impedir o progresso do vírus.

As autoridades públicas e os sistemas de saúde foram, em quase todos os lugares, pegos em flagrante. Quarenta anos de neoliberalismo na América do Norte e do Sul e na Europa deixaram o público totalmente exposto e mal preparado para enfrentar uma crise de saúde pública desse calibre, apesar de sustos anteriores como a SARS e o Ebola fornecerem avisos abundantes e lições convincentes sobre o que seria necessário ser feito. Em muitas partes do suposto mundo “civilizado”, os governos locais e as autoridades regionais, que invariavelmente formam a linha de frente da defesa em emergências de saúde e segurança pública desse tipo, tinham sido privados de financiamento graças a uma política de austeridade projetada para financiar cortes de impostos e subsídios para as empresas e os ricos.

O corporativismo da grande industria farmacêutica tem pouco ou nenhum interesse em pesquisas não remuneradas sobre doenças infecciosas (como toda a categoria do coronavírus que são bem conhecidas desde a década de 1960). A industria farmacêutica raramente investe em prevenção. Tem pouco interesse em investir na prevenção de crises na saúde pública. Adora desenhar curas. Quanto mais doentes estamos, mais eles ganham. A prevenção não contribui para o valor do acionista. O modelo de negócios aplicado à provisão de saúde pública eliminou as capacidades excedentes de enfrentamento que seriam necessárias em uma emergência. A prevenção não é nem uma hipótese de trabalho suficientemente atraente para justificar parcerias público-privadas.
O presidente Trump cortou o orçamento do Centro de Controle de Doenças e dissolveu o grupo de trabalho sobre pandemias no Conselho de Segurança Nacional no mesmo espírito que cortou todo o financiamento de pesquisas, inclusive sobre as mudanças climáticas. Se eu quisesse ser antropomórfico e metafórico sobre isso, concluiria que o COVID-19 é a vingança da natureza por mais de quarenta anos de maus-tratos e abuso nas mãos de um extrativismo neoliberal violento e não regulamentado.

Talvez seja sintomático que os países menos neoliberais, China e Coréia do Sul, Taiwan e Cingapura, tenham passado melhor pela pandemia do que a Itália. Embora houvesse muitas evidências de que a China lidava mal com a SARS, com muita dissimulação e negação inicial, desta vez o presidente Xi Jinping passou rapidamente a exigir transparência, tanto nos relatórios quanto nos testes, assim como a Coréia do Sul. Mesmo assim, na China, perdeu-se um tempo valioso (apenas alguns dias fazem toda a diferença). O que foi notável na China, no entanto, foi o confinamento da epidemia à província de Hubei, com Wuhan no centro. A epidemia não se mudou para Pequim, nem para o oeste nem para o sul. As medidas tomadas para confinar geograficamente o vírus foram draconianas. Seria quase impossível replicar em outros lugares por razões políticas, econômicas e culturais. Os relatórios que saem da China sugerem que os tratamentos e as políticas não foram nada cuidadosos.
Além disso, a China e Cingapura empregaram seus poderes de vigilância pessoal em níveis invasivos e autoritários. Mas eles parecem ter sido extremamente eficazes em conjunto. Embora as medidas tenham sido acionadas alguns dias antes, os modelos sugerem que muitas mortes poderiam ter sido evitadas. Esta é uma informação importante: em qualquer processo de crescimento exponencial, existe um ponto de inflexão além do qual a massa ascendente fica totalmente fora de controle (observe aqui, mais uma vez, o significado da massa em relação à taxa). O fato de Trump ter demorado por tantas semanas ainda pode ser oneroso a muitas vidas.

Os efeitos econômicos estão agora fora de controle, tanto na China quanto fora dela. As interrupções no trabalho nas cadeias de produção das empresas e em certos setores se mostraram mais sistêmicas e substanciais do que se pensava inicialmente. O efeito a longo prazo pode ser o de encurtar ou diversificar as cadeias de suprimentos, enquanto se move para formas de produção menos intensivas de mão-de-obra (com enormes implicações para o emprego) e maior dependência de sistemas de produção inteligentes. A ruptura das cadeias produtivas implica demitir ou dispensar trabalhadores, o que diminui a demanda final, enquanto a demanda por matérias-primas diminui o consumo produtivo. Esses impactos no lado da demanda já teriam produzido por si só uma leve recessão.

Mas as maiores vulnerabilidades existiam em outros lugares. Os modos de consumismo que explodiram após 2007–8 caíram com conseqüências devastadoras. Esses modos eram baseados na redução do tempo de rotatividade do consumo. A enxurrada de investimentos em tais formas de consumo teve tudo a ver com a absorção máxima de volumes de capital exponencialmente crescentes em formas de consumismo rápida rotatividade. O turismo internacional foi emblemático. As visitas internacionais aumentaram de US$ 800 milhões para US$ 1,4 bilhão entre 2010 e 2018.

Essa forma de consumismo instantâneo exigiu investimentos maciços em infra-estrutura de aeroportos e companhias aéreas, hotéis e restaurantes, parques temáticos e eventos culturais e etc.. Este local de acumulação de capital está agora morto: as companhias aéreas estão perto da falência, os hotéis estão vazios e o desemprego em massa nas indústrias hoteleira é iminente. Comer fora não é uma boa ideia e restaurantes e bares foram fechados em muitos lugares. Até a comida para viagem parece arriscada. O vasto exército de trabalhadores na economia de freelancers e autônomos ou em outras formas de trabalho precário estão sendo demitido sem meios visíveis de apoio. Eventos como festivais culturais, torneios de futebol e basquete, shows, convenções profissionais e de negócios e até reuniões políticas em torno das eleições estão sendo cancelados. Essas formas de consumismo experiencial “baseadas em eventos” foram encerradas. As receitas dos governos locais foram afetadas. Universidades e escolas estão fechando.

Grande parte do modelo mais avançado no consumismo capitalista contemporâneo é inoperável nas condições atuais. O esforço em direção ao que André Gorz descreve como “consumismo compensatório” (no qual os trabalhadores alienados deveriam recuperar o ânimo através de um pacote de férias em uma praia tropical) foi sabotado.

As economias capitalistas contemporâneas são 70% ou até 80% motivadas pelo consumismo. Nos últimos quarenta anos, a confiança e o sentimento do consumidor tornaram-se a chave para a mobilização da demanda efetiva e o capital tornou-se cada vez mais orientado pela demanda e pelas necessidades. Essa fonte de energia econômica não foi sujeita a flutuações violentas (com algumas exceções, como a erupção vulcânica da Islândia que bloqueou os vôos transatlânticos por algumas semanas). Mas o COVID-19 não está sustentando uma flutuação violenta, mas um colapso onipotente no coração da forma de consumismo dominante nos países mais ricos. A forma espiral de acumulação infinita de capital está entrando em colapso interior, de uma parte do mundo para outra. A única coisa que pode salvá-lo é um consumismo em massa financiado pelo governo, evocado do nada. Isso exigirá socializar toda a economia dos Estados Unidos, por exemplo, sem chamar isso de socialismo.

As linhas de frente

Existe um mito conveniente de que as doenças infecciosas não reconhecem classe social ou outras barreiras e fronteiras sociais. Como muitos dizem, há uma certa verdade nisso. Nas epidemias de cólera do século XIX, a transcendência das barreiras de classe foi suficientemente dramática para gerar o nascimento de um movimento público de saneamento e saúde que se profissionalizou e perdurou até os dias de hoje. Se esse movimento foi projetado para proteger todos ou apenas as classes altas nem sempre foi uma história clara. Hoje, porém, o diferencial de classe e os efeitos e impactos sociais contam uma história diferente. Os impactos econômicos e sociais são filtrados através de discriminações “costumeiras” que estão em toda parte em evidência. Para começar, a força de trabalho que deve cuidar do número crescente de doentes é altamente seccionada por gênero, raça e etnia na maior parte do mundo. Nisso reflete as forças de trabalho baseadas em classe encontradas em, por exemplo, aeroportos e outros setores logísticos.

Essa “nova classe trabalhadora” está na vanguarda e tem o peso de ser a força de trabalho que está com o maior risco de contrair o vírus por meio de seus empregos ou de ser demitida sem ter garantias por causa da contenção econômica imposta pelo vírus. Há, por exemplo, a questão de quem pode trabalhar em casa e quem não pode. Isso aumenta a divisão social, assim como a questão de quem pode se dar ao luxo de se isolar ou se colocar em quarentena (com ou sem pagamento) em caso de contato ou infecção. Da mesma maneira que aprendi a chamar os terremotos na Nicarágua (1973) e na Cidade do México (1995) de “terremotos de classe”, o progresso do COVID-19 exibe todas as características de uma pandemia de classe, de gênero e de raça.
Embora os esforços de mitigação estejam convenientemente ocultos na retórica de que “estamos todos juntos nisso”, as práticas, principalmente por parte dos governos nacionais, sugerem motivações mais sinistras. A classe trabalhadora contemporânea nos Estados Unidos (composta predominantemente por afro-americanos, latino-americanos e mulheres assalariadas) enfrenta a falta de escolha entre contrair a contaminação em nome de cuidar e manter os principais recursos da provisão (como supermercados) abertos ou ficar desempregada sem benefícios (com cuidados de saúde adequados). O pessoal assalariado, como eu, podem trabalhar em casa e receber seus salários, enquanto os CEOs voam em jatos particulares e helicópteros para se isolarem.
As forças de trabalho em muitas partes do mundo são socializadas há muito tempo para se comportarem como bons sujeitos neoliberais, o que significa culpar a si mesmas ou a Deus se algo der errado, mas nunca ousar sugerir que o capitalismo pode ser o problema. Mas mesmo bons indivíduos que defendem o neoliberalismo podem ver que há algo errado com a maneira como esta pandemia está sendo respondida.

A grande questão é: quanto tempo isso vai durar? Pode demorar mais de um ano e, quanto mais tempo, mais desvalorização, inclusive da força de trabalho. Os níveis de desemprego quase certamente subirão para níveis comparáveis ​​aos da década de 1930 na ausência de intervenções estatais maciças que terão que ir contra o mantra neoliberal. As ramificações imediatas para a economia e para o cotidiano social são múltiplas. Mas eles não são todos ruins. Na medida em que o consumismo contemporâneo estava se tornando excessivo, estava se aproximando do que Marx descreveu como “consumo excessivo e consumo insano, alimentando, por sua vez, o monstruoso e a bizarra queda” de todo o sistema.

A imprudência desse consumo excessivo tem desempenhado um papel importante na degradação ambiental. O cancelamento de voos de companhias aéreas e a restrição radical de transporte e movimentação tiveram conseqüências positivas em relação às emissões de gases de efeito estufa. A qualidade do ar em Wuhan está muito melhor, como também ocorre em muitas cidades dos EUA.

Os locais de ecoturismo terão tempo para se recuperar das pegadas ambientais. Os cisnes retornaram aos canais de Veneza. Na medida em que o gosto pelo excesso de consumo imprudente e insensato for reduzido, poderá haver alguns benefícios a longo prazo. Menos mortes no Monte Everest podem ser uma coisa boa. E, embora ninguém diga isso em voz alta, o viés demográfico do vírus pode acabar afetando as pirâmides etárias, com efeitos a longo prazo sobre os encargos da Previdência Social e o futuro da “indústria de assistência médica”. A vida cotidiana diminui e, para algumas pessoas, isso será uma bênção. As regras sugeridas de distanciamento social podem, se a emergência persistir por tempo suficiente, levar a mudanças culturais. A única forma de consumismo que quase certamente se beneficiará com tudo isso é o que eu chamo de economia “Netflix”, que atende a “binge watchers” de qualquer maneira.

Na frente econômica, as respostas foram condicionadas pelo êxodo na crise de 2007–8. Isso implicou uma política monetária ultra-flexível, associada ao resgate dos bancos, complementada por um aumento dramático no consumo produtivo conduzido pela expansão maciça do investimento em infra-estrutura na China. Este último não pode ser repetido na escala necessária. Os pacotes de resgate criados em 2008 focavam nos bancos, mas também envolviam a estatização da General Motors. Talvez seja significativo que, diante do descontentamento dos trabalhadores e do colapso da demanda do mercado, as três grandes montadoras de Detroit estejam fechando, pelo menos temporariamente.

Se a China não pode repetir seu papel de 2007–8, então o ônus de sair da atual crise econômica agora muda para os Estados Unidos e aqui está a ironia final: as únicas políticas que funcionarão, tanto econômica quanto politicamente, são muito mais socialistas do que qualquer coisa que Bernie Sanders possa propor e esses programas de resgate terão que ser iniciados sob a égide de Donald Trump, presumivelmente sob a máscara do “make America Great again”.
Todos os republicanos que se opuseram visceralmente ao resgate de 2008 terão que engolir a seco ou desafiar Donald Trump. Este último, se for sagaz, cancelará as eleições em caráter emergencial e declarará a origem de uma presidência imperial para salvar a capital e o mundo dos “tumultos e revoluções”.

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Original em:

https://jacobin.com.br/2020/03/politica-anticapitalista-em-tempos-de-coronavirus/

sexta-feira, 20 de março de 2020

O agronegócio arrisca milhões de mortes

Entrevista a Rob Wallace (11.03.2020)


Quão perigoso é o novo coronavírus?
Depende do ponto onde você está no desenvolvimento do seu surto local de Covid-19: cedo, nível de pico, tarde? Até que ponto é boa a resposta da sua região em termos de saúde pública? Quais são os seus dados demográficos? Qual é a sua idade? Você está imunologicamente comprometido? Qual é a sua saúde à partida? Para perguntar uma possibilidade não diagnosticável, a sua imunogenética, a genética subjacente à sua resposta imunológica, alinha-se ou não com o vírus?

Então todo este alarido sobre o vírus não passa de tácticas de susto?
Não, certamente que não. A nível da população, o Covid-19 estava a registar entre 2 e 4% de casos fatais no início do surto em Wuhan. Fora de Wuhan, o ratio parece cair para mais ou menos 1% e ainda menos, mas também parece aumentar em pontos aqui e ali, inclusive em lugares na Itália e nos Estados Unidos. O seu alcance não parece muito em comparação com, digamos, a SARS a 10%, a pneumónica de 1918 a 5-20%, a "gripe das aves" H5N1 a 60%, ou em alguns pontos o Ebola a 90%. Mas certamente excede os 0,1% da gripe sazonal. O perigo não é apenas uma questão de taxa de mortalidade, porém. Temos de lidar com o que é chamado de taxa de penetração ou de ataque à comunidade: que parte da população global é penetrada pelo surto.

Podes ser mais específico?
A rede global de viagens está com uma conectividade recorde. Sem vacinas ou antivirais específicos para os coronavírus, nem neste momento qualquer imunidade de grupo ao vírus, mesmo uma estirpe com apenas 1% de mortalidade pode representar um perigo considerável. Com um período de incubação de até duas semanas e provas crescentes de alguma transmissão antes da doença – antes de sabermos que as pessoas estão infectadas – poucos lugares estariam provavelmente livres de infecção. Se, digamos, o Covid-19 registar 1% de fatalidade no curso da infecção de quatro mil milhões de pessoas, isso significa 40 milhões de mortos. Uma pequena proporção de um grande número ainda pode ser um grande número.
Estes são números assustadores para um agente patogénico ostensivamente menos que virulento...
Definitivamente, e estamos apenas no início do surto. É importante entender que muitas novas infecções mudam com o curso das epidemias. Infectividade, virulência, ou ambas podem atenuar. Por outro lado, outros surtos aumentam de virulência. A primeira onda da pandemia de pneumónica na primavera de 1918 foi uma infecção relativamente leve. A segunda e terceira onda, no inverno e em 1919, é que mataram milhões.

Mas os cépticos da pandemia argumentam que muito menos pacientes foram infectados e mortos pelo coronavírus do que pela gripe sazonal típica. O que você pensa sobre isso?
Eu seria o primeiro a festejar se este surto se revelasse um fracasso. Mas esses esforços para descartar o Covid-19 como um possível perigo, citando outras doenças mortais, especialmente a gripe, é um dispositivo de retórica para fazer com que a preocupação com o coronavírus seja tão mal colocada.
Então, a comparação com a gripe sazonal é coxa ...
Faz pouco sentido comparar dois agentes patogénicos em diferentes partes das suas epicurvas. Sim, a gripe sazonal infecta muitos milhões em todo o mundo, matando, segundo estimativas da OMS, até 650.000 pessoas por ano. O Covid-19, no entanto, está apenas a começar a sua jornada epidemiológica. E, ao contrário da gripe, não temos nem vacina, nem imunidade de grupo para retardar a infecção e proteger as populações mais vulneráveis.
Mesmo que a comparação seja enganadora, ambas as doenças se devem a vírus, mesmo a um grupo específico, os vírus RNA. Ambas podem causar doenças. Ambas afectam a área da boca e garganta e, por vezes, também os pulmões. Ambas são bastante contagiosas.
Essas são semelhanças superficiais que falham uma parte crítica na comparação dos dois agente patogénicos. Nós sabemos muito sobre a dinâmica da gripe. Sabemos muito pouco sobre o Covid-19. Está cheio de incógnitas. Na verdade, há muito sobre o Covid-19 que é mesmo desconhecido até que o surto se desenrole completamente. Ao mesmo tempo, é importante entender que não é uma questão de Covid-19 contra a gripe. É o Covid-19 e a gripe. O surgimento de múltiplas infecções capazes de se tornarem pandémicas, atacando populações em grupos, deve ser a preocupação central e frontal.

Você tem pesquisado epidemias e suas causas há vários anos. Em seu livro "Big Farms Make Big Flu" você tenta estabelecer essas conexões entre práticas de agricultura industrial, agricultura orgânica e epidemiologia viral. Quais são as suas percepções?
O perigo real de cada novo surto é o fracasso – ou, melhor dizendo – a recusa expedita de compreender que cada novo Covid-19 não é um incidente isolado. O aumento da ocorrência de vírus está intimamente ligado à produção de alimentos e à rentabilidade das grandes empresas multinacionais. Qualquer pessoa que pretenda entender por que os vírus estão se tornando mais perigosos deve investigar o modelo industrial da agricultura e, mais especificamente, a produção animal. Actualmente, poucos governos, e poucos cientistas, estão preparados para fazê-lo. Muito pelo contrário.
Quando os novos surtos aparecem, os governos, os media e mesmo a maioria do establishment médico estão tão concentrados em cada emergência isolada que descartam as causas estruturais que estão levando múltiplos agentes patogénicos marginalizados a uma celebridade global repentina, um após o outro.





De quem é a culpa?
Eu disse agricultura industrial, mas há um âmbito maior. O capital está a encabeçar o assalto à terra na última floresta primária e nas terras agrícolas de pequenos agricultores em todo o mundo. Essas investidas impulsionam o desmatamento e o desenvolvimento, levando ao surgimento de doenças. A diversidade funcional e a complexidade que essas enormes extensões de terra representam estão a ser racionalizadas de tal forma que agentes patogénicos anteriormente compartimentados estão a espalhar-se pela pecuária local e pelas comunidades humanas. Em suma, os centros do capital, lugares como Londres, Nova Iorque e Hong Kong, devem ser considerados os nossos principais focos de doença.

Para que doenças é este o caso?
Não há agentes patogénicos livres do capital neste momento. Mesmo os mais remotos são afectados, se bem que de forma distante. O Ébola, o Zika, os coronavírus, a febre amarela, uma variedade de gripes das aves e a peste suína africana estão entre os muitos agentes patogénicos que saem dos hinterlands mais remotos para os circuitos peri-urbanos, as capitais regionais e, por fim, para a rede global de viagens. Desde morcegos frugívoros no Congo até à matança de banhistas em Miami, dentro de algumas semanas.

Qual é o papel das empresas multinacionais neste processo?
O Planeta Terra é em grande parte a Fazenda Planeta neste ponto, tanto na biomassa como na terra utilizada. O agronegócio tem como objetivo monopolizar o mercado de alimentos. A quase totalidade do projeto neoliberal está organizada em torno do apoio aos esforços das empresas sediadas nos países industrializados mais avançados para roubar a terra e os recursos dos países mais fracos. Como resultado, muitos desses novos agentes patogénicos, anteriormente controlados por ecologias florestais há muito evoluídas, estão a ser libertados, ameaçando o mundo inteiro.
Que efeitos têm os métodos de produção do agronegócio sobre isto?
A agricultura liderada pelo capital, que substitui ecologias mais naturais, oferece o meio exacto pelo qual os agentes patogénicos podem evoluir para os fenótipos mais virulentos e infecciosos. Não se poderia conceber um sistema melhor para criar doenças mortais.

Como assim?
O cultivo de monoculturas genéticas de animais domésticos remove quaisquer barreiras imunitárias que possam estar disponíveis para retardar a transmissão. As maiores dimensões e densidades da população facilitam maiores taxas de transmissão. Tais condições de aglomeração deprimem a resposta imunológica. O alto rendimento, parte de qualquer produção industrial, proporciona um fornecimento continuamente renovado de susceptibilidades, o combustível para a evolução da virulência. Por outras palavras, o agronegócio está tão concentrado nos lucros que a opção perante um vírus que pode matar mil milhões de pessoas é tratada como um risco que vale a pena correr.

O quê!?
Estas empresas podem simplesmente externalizar os custos das suas operações epidemiologicamente perigosas sobre todos os outros. Desde os próprios animais aos consumidores, trabalhadores agrícolas, ambientes locais e governos em todas as jurisdições. Os danos são tão extensos que se devolvêssemos esses custos aos balanços das empresas, o agronegócio, como o conhecemos, acabaria para sempre. Nenhuma empresa poderia suportar os custos dos danos que ela impõe.

Em muitos meios de comunicação, afirma-se que o ponto de partida do coronavírus foi um "mercado de alimentos exóticos" em Wuhan. Esta descrição é verdadeira?
Sim e não. Há pistas espaciais a favor dessa ideia. O rastreamento de contactos vinculou infecções ao mercado grossista de “Sea Food” de Hunan em Wuhan, onde animais selvagens foram vendidos. A amostragem ambiental parece indicar a extremidade oeste do mercado onde os animais selvagens eram mantidos.
Mas até que ponto devemos investigar no espaço e no tempo? Quando exactamente a emergência realmente começou? O foco no mercado ignora as origens na agricultura selvagem no interior e na sua crescente capitalização. Globalmente, e também na China, os alimentos selvagens estão se tornando mais formalizados como um sector económico. Mas a sua relação com a agricultura industrial vai além da mera partilha dos mesmos sacos de dinheiro. À medida que a produção industrial – ovo, aves e similares – se expande para a floresta primária, pressiona os operadores de alimentos silvestres a dragar mais na floresta para as populações de origem, aumentando a interface com novos agentes patogénicos, incluindo o Covid-19, e o alastramento dos mesmos.

O Covid-19 não é o primeiro vírus a desenvolver-se na China que o governo tentou encobrir.
Sim, mas isto não é nenhum excepcionalismo chinês. Os EUA e a Europa também serviram como grund zero para novas gripes, recentemente o H5N2 e o H5Nx, e suas multinacionais e procuradores neocoloniais impulsionaram o surgimento do Ébola na África Ocidental e do Zika no Brasil. Funcionários da saúde pública dos EUA encobriram o agronegócio durante os surtos de H1N1 (2009) e H5N2.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou agora uma "emergência sanitária de preocupação internacional". Este passo é correcto?
Sim. O perigo de tal agente patogénico é que as autoridades sanitárias não tenham um controlo sobre a distribuição estatística dos riscos. Não temos ideia de como o agente patogénico pode reagir. Passamos de um surto num mercado para infecções espalhadas pelo mundo em questão de semanas. O agente patogénico pode simplesmente extinguir-se. Isso seria óptimo. Mas nós não sabemos. Uma melhor preparação melhoraria as hipóteses de reduzir a velocidade de expansão do agente patogénico.

A declaração da OMS também faz parte do que eu chamo de teatro pandémico. Organizações internacionais morreram por inacção. A Liga das Nações vem à memória. O grupo de organizações da ONU está sempre preocupado com a sua relevância, poder e financiamento. Mas esse tipo de acção também pode convergir para a preparação e a prevenção que o mundo precisa, para romper as cadeias de transmissão do Covid-19.

A reestruturação neoliberal do sistema de saúde piorou tanto a pesquisa quanto o atendimento geral dos pacientes, por exemplo, nos hospitais. Que diferença poderia fazer um sistema de saúde mais bem financiado para combater o vírus?
Há a terrível mas reveladora história do empregado duma empresa de aparelhos médicos de Miami que, ao voltar da China com sintomas semelhantes aos da gripe, fez a coisa certa pela sua família e pela comunidade, e exigiu um teste no hospital local para o Covid-19. Ele temia que a sua opção mínima de Obamacare não cobrisse os testes. E estava certo. De repente ele estava com a corda na garganta por 3270 dólares. Uma reivindicação americana pode ser uma ordem de emergência que estipule que, durante um surto pandémico, todas as contas médicas pendentes relacionadas com testes de infecção e com o tratamento após um teste positivo seriam pagas pelo governo federal. Queremos encorajar as pessoas a procurarem ajuda, afinal, em vez de se esconderem – e infectarem outras – porque não podem pagar o tratamento. A solução óbvia é um serviço nacional de saúde – dotado de pessoal e equipamento para lidar com tais emergências em toda a comunidade – para que um problema tão ridículo como desencorajar a cooperação comunitária nunca surgisse.

Assim que o vírus é descoberto num país, os governos em toda a parte reagem com medidas autoritárias e punitivas, como a quarentena obrigatória de áreas inteiras do país e cidades. Será que medidas tão drásticas são justificadas?
Usar um surto para testar o mais recente controle autocrático pós-surto é o capitalismo de desastre a sair dos trilhos. Em termos de saúde pública, eu pecaria por excesso para o lado da confiança e da compaixão, que são importantes variáveis epidemiológicas. Sem nenhuma delas, as jurisdições perdem o apoio das populações. Um sentido de solidariedade e de respeito comum é uma parte crítica para obter a cooperação de que precisamos para sobreviver juntos a tais ameaças. Auto-quarentenas com o devido apoio de brigadas de bairro treinadas, camiões de abastecimento de alimentos indo de porta em porta, dispensa do trabalho e seguro de desemprego – podem suscitar esse tipo de cooperação, que estamos todos juntos nisto.
Como deve saber, na Alemanha com a AfD temos um partido nazi de facto com 94 lugares no parlamento. A dura direita nazi e outros grupos em associação com os políticos da AfD usam a crise do coronavírus para a sua agitação. Eles espalham (falsos) relatos sobre o vírus e exigem medidas mais autoritárias do governo: Restringir voos e paragens de entrada de migrantes, encerramento de fronteiras e quarentena forçada...
Proibições de viagens e fechamento de fronteiras são exigências com as quais a direita radical quer racializar o que são agora doenças globais. Isto é, é claro, um disparate. Neste ponto, dado que o vírus já está a caminho de se espalhar por todo o lado, o mais sensato é trabalhar para desenvolver o tipo de resiliência de saúde pública em que, seja quem for que apareça com uma infecção, nós temos os meios para tratá-los e curá-los. É claro que, se primeiro pararmos de roubar as terras das pessoas no estrangeiro e de provocar os êxodos, primeiro poderemos evitar que os agentes patogénicos surjam.

O que seriam mudanças sustentáveis?
A fim de reduzir o aparecimento de novos surtos de vírus, a produção de alimentos tem de mudar radicalmente. A autonomia dos agricultores e um forte sector público podem refrear as engrenagens ambientais e as infecções por fuga. Introduzir variedades de reserva e de cultivos – e regressos estratégicos ao selvagem – tanto a nível da fazenda como a nível regional. Permitir que os animais que servem de alimento se reproduzam no local, para transmitir as imunidades testadas. Conectar a produção just in time com a circulação just in time. Subsidiar apoios de preços e programas de compras ao consumidor que apoiem a produção agroecológica. Defender estas experiências tanto das compulsões que a economia neoliberal impõe aos indivíduos e comunidades como da ameaça da repressão do Estado liderado pelo capital.

O que devem exigir os socialistas perante a dinâmica crescente dos surtos de doenças?
O agronegócio como um modo de reprodução social deve ser definitivamente terminado, nem que seja apenas por uma questão de saúde pública. A produção altamente capitalizada de alimentos depende de práticas que põem em perigo toda a humanidade, neste caso ajudando a desencadear uma nova pandemia mortal. Devemos exigir que os sistemas alimentares sejam socializados de tal modo que os agentes patogénicos deste perigo sejam desde logo impedidos de surgir. Isso exigirá a reintegração da produção de alimentos para as necessidades das comunidades rurais em primeiro lugar. Isso exigirá práticas agroecológicas que protejam o meio ambiente e os agricultores enquanto eles cultivam os nossos alimentos. Em grande plano, devemos curar as fendas metabólicas que separam as nossas ecologias das nossas economias. Em resumo, temos um planeta para ganhar.
Muito obrigado pela entrevista.

(As perguntas foram feitas por Yaak Pabst).

Rob Wallace é biólogo e filogeógrafo evolutivo para a saúde pública nos EUA. Ele trabalha há vinte e cinco anos em vários aspectos das novas pandemias e é autor do livro "Big Farms Make Big Flu".

Original CORONAVIRUS: »AGRIBUSINESS WOULD RISK MILLIONS OF DEATHS.«, in: Marx21.de

Rob Wallace, sobre a situação em Itália e na Inglaterra
"Luca de Crescenzo está a traduzir a minha entrevista sobre o coronavírus para italiano. Ele me fez duas perguntas complementares que, juntamente com as minhas respostas, vou postar aqui em inglês.

O que notei apenas depois de carregar no botão enviar é que, duas semanas após a entrevista original, as minhas respostas aqui estão a tomar um tom mais agudo. Embora antes eu tenha abordado o surto com uma análise estrutural radical apropriada, agora, à medida que a pandemia se aproxima, estou começando a sentir a pitada de uma lacuna em tácticas radicais.
Você também deveria sentir. O que fazemos quando tanto os governos neoliberais como o capital se recusam a usar todos os recursos da sociedade para nos proteger durante um surto mortal? Os trabalhadores italianos podem dar o tom para uma resposta adequada?
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P. Gostaria que acrescentasse um comentário sobre a recente proposta das autoridades britânicas de não tomar medidas drásticas para conter o vírus e apostar antes no desenvolvimento da imunidade de grupo. Você escreveu: este é um fracasso que finge ser uma solução. Pode explicar isso?

R. Os Tories afirmam que juntar-se aos EUA na efectiva negação dos cuidados de saúde é a *melhor* cura activa. O governo está a tentar fazer passar a sua resposta tardia em deixar o Covid-19 trabalhar através da população para produzir a imunidade de grupo que diz que irá proteger os mais vulneráveis.
Isto é o oposto absoluto de "não fazer mal", como diz o juramento do médico. Isto é, vamos fazer o máximo de dano.

A imunidade do grupo é tratada nos círculos epidemiológicos como, na melhor das hipóteses, um benefício colateral sujo de um surto. Pessoas suficientes carregam anticorpos do último surto para manter a população susceptível suficientemente baixa, para que nenhuma nova infecção possa ocorrer, protegendo mesmo aqueles que não tenham sido expostos anteriormente. No entanto, muitas vezes não é mais do que um efeito passageiro, se o agente patogénico em questão evolui a partir de debaixo da cobertura da população.
Fazemos melhor em induzir tal imunidade através de campanhas de vacinação. Normalmente, tal efeito requer uma grande maioria de pessoas vacinadas para trabalhar. O que, fora das falhas do mercado na produção de vacinas, não é rotineiramente um problema, pois quase ninguém morre.

Dado o rastro de mortos de uma pandemia mortal, nenhum sistema de saúde pública procuraria ativamente um epifenómeno pós-hoc como um objetivo instrumental. Nenhum governo encarregado de proteger as próprias vidas de uma população permitiria que tal agente patogénico funcionasse sem obstáculos - seja o que for que se faça para "atrasar" a propagação, como se um governo já um passo atrás na resposta pudesse exercer tal controle mágico. Uma campanha de negligência activa mataria centenas de milhares de pessoas muito vulneráveis que os Conservadores afirmam querer proteger.
Mas destruir a aldeia para salvá-la é a premissa central de um Estado do mais virulento carácter de classe. É o sinal de um império exausto que, incapaz de seguir a China e outros países na luta, finge, como eu escrevi, que seus fracassos são exactamente a solução.

P. Na Itália, apesar da quarentena, e além dos poucos que estão trabalhando em casa, muitos trabalhadores ainda vão trabalhar todos os dias. Muitas lojas estão fechadas, mas a maioria das fábricas estão abertas, mesmo as que não produzem os bens necessários. Recentemente, os sindicatos e a federação dos empregadores italianos chegaram a um acordo sobre medidas de segurança e protecção no local de trabalho, que dá às empresas apenas "recomendações" sobre distância, limpeza, uso de máscaras, sem muita especificação. Há fortes razões para acreditar que não serão respeitadas. Qual é a sua opinião sobre isso? A força dos trabalhadores é uma variável epidemiológica?

A. Os trabalhadores são tratados como carne para canhão. Não só no campo de batalha, mas qundo voltam a casa. Aqui tem um vírus a rasgar a população italiana a um ritmo que excede o do ritmo que passou pela China, e o capital está a fingir que é um negócio como de costume - business as usual. Negociar uma detente que permita que este trabalho continue sem precauções ao nível do biolab é destrutivo tanto para a posição dos trabalhadores - você está sinalizando que vai comer qualquer tigela de merda que eles servem - como para a própria saúde da nação.

Se não pela própria legitimidade dos vossos sindicatos, então pelas vossas próprias vidas, e pelas dos vossos colegas de trabalho e membros da comunidade mais vulneráveis - fechem essas fábricas! O pico de casos na Itália é tão vertiginoso que a auto-quarantena e as condições de trabalho negociadas não serão suficientes para acabar com o surto. O Covid-19 é demasiado infeccioso e, sob um bloqueio dos serviços médicos, demasiado mortal para meias-medidas. A Itália está a ser invadida por um vírus que está a dar cabo do país, com lutas de rua de porta em porta e de casa em casa.

O que eu quero dizer é que a Itália precisa de se livrar disso já!
Sim, os trabalhadores sustentam rotineiramente o céu durante dias sombrios e perigosos, inclusive durante um surto mortal. Mas se o trabalho não é uma questão de operações diárias necessárias durante a quarentena comunitária, parem-no. Como em todos os países do mundo inteiro, o governo deve então ser responsabilizado pela cobertura dos salários dos trabalhadores que deixaram o trabalho ao serviço da saúde pública do país.

Não é minha decisão, e meu próprio país está totalmente engarrafando a sua resposta à pandemia, mas caso o capital resista a tais esforços para proteger a vida de milhões de pessoas, os trabalhadores italianos, como os trabalhadores de outros lugares, devem considerar a possibilidade de entrar em sua orgulhosa história de militância trabalhista e encontrar um meio de lutar contra o comando operacional dos gananciosos e incompetentes. Se as fábricas que produzem bens não essenciais ainda estão em funcionamento, isso significa que a gerência e os sacos de dinheiro por trás dela não querem saber de você. Mesmo agora o director financeiro lá em cima está se provando mais do que feliz em imputar os trabalhadores mortos aos custos de produção se ele conseguir escapar.

Não seria a primeira vez que as pessoas da região recuam durante um surto. O historiador Sheldon Watts notou uma inversão inesperada no desastre inicial do capitalismo:

"Na sua pressa de se salvarem [da peste] por fuga, os magistrados florentinos temiam que as pessoas comuns deixadas para trás tomassem o controle da cidade; o medo talvez fosse justificado. No verão de 1378, quando as disputas entre facções imobilizaram temporariamente a elite florentina, os trabalhadores da lã rebeldes conquistaram o controle do governo e permaneceram no poder por vários meses".

Vários meses hoje podem salvar muitos milhares de vidas. Com muitos países a dez dias de se encontrarem na situação difícil da Itália, os trabalhadores italianos podem oferecer um exemplo para o resto do mundo de que a vida cotidiana das pessoas é mais importante do que o lucro de seja quem for."

O monstro finalmente à nossa porta

Mike Davis 

Aranha risonha, Odilon Redon (1891)

O COVID-19 é, finalmente, o monstro esperando na porta. Pesquisadores estão trabalhando noite e dia para caracterizar o surto, mas enfrentam três grandes desafios. Primeiramente, a contínua falta ou indisponibilidade de kits de teste acabou com toda a esperança de contenção. Além disso, está impedindo estimativas exatas de parâmetros fundamentais, tais como a taxa de redução, tamanho da população infectada e número de infecções benignas. O resultado é um caos de números.

Há, entretanto, dados mais confiáveis sobre os impactos do vírus em certos grupos em alguns países. É assustador. Itália e Inglaterra, por exemplo, reportam uma taxa de mortalidade muito maior após os 65 anos. A “gripe corona” que Trump descarta sem preocupação é um perigo sem precedentes para populações geriátricas, com um número de mortos na casa dos milhões.

Em segundo lugar, tal como gripes anuais, o vírus sofre mutações conforme cruza populações com diferentes composições etárias e imunidades. A variante com a qual americanos provavelmente serão infectados já é ligeiramente diferente daquela do surto original em Wuhan. Futuras mutações podem ser triviais, ou podem alterar o atual padrão de distribuição da doença, que ascende com a idade, com bebês e crianças pequenas mostrando baio risco de infecções sérias, enquanto octogenários enfrentam perigo mortal de pneumonia viral.

Em terceiro lugar, mesmo que o vírus se mantenha estável e não sofra grandes mutações, seu impacto em infectados abaixo dos 65 anos de idade pode ser radicalmente diferente em países pobres e em grupos de extrema pobreza. Leve em consideração a experiência global da gripe espanhola, de 1918-19, que, estima-se, matou entre 1 e 2 por cento da população mundial. Em contraste com o coronavírus, era mais mortal a jovens adultos, e isso foi comumente explicado em virtude de seus sistemas imunológicos relativamente mais fortes, que reagia de maneira exagerada à infecção liberando uma mortal “tempestade de citocinas” contra as células do pulmão. O H1N1 original notoriamente encontrou um nicho favorito em acampamentos militares e trincheiras de campos de batalha, onde ceifou jovens soldados às dezenas de milhares. O colapso da grande ofensiva alemã de primavera de 1918, assim como o resultado de guerra, chegou a ser atribuído ao fato de que os aliados, diferentemente de seu inimigo, podiam substituir exércitos doentes com recém chegadas tropas americanas.

Raramente é apreciado, no entanto, que 60% da mortalidade global ocorreu no oeste da Índia, onde as exportações de grãos para a Grã-Bretanha e práticas brutais de requisição coincidiram com uma grande seca. A escassez alimentar resultante levou milhões de pessoas pobres à beira inanição. Eles tornaram-se vítimas de uma sinergia sinistra entre desnutrição, que suprimia suas respostas imunes a infecções, e pneumonia bacteriana e viral desenfreada. Em outro caso, o Irã ocupado pelos britânicos, vários anos de seca, cólera e escassez de alimentos, seguido de um surto generalizado de malária, pré-condicionou a morte de estimadamente um quinto da população.

Esta história - especialmente as consequências desconhecidas da interação com desnutrição e infecções já existentes - deveria nos alertar que o COVID-19 deve ter um caminho diferente, e mais mortífero, nas favelas da África e do sul da Ásia. O perigo às populações mais pobres tem sido completamente ignorado por jornalistas e governos ocidentais. O único artigo que vi alega que, porque a população urbana do oeste da África é a mais jovem do mundo, a pandemia deve ter um impacto leve. Sob a luz da experiência de 1918, esta é uma extrapolação tola. Ninguém sabe o que vai acontecer no curso das próximas semanas em Lagos, Nairobi ou Kolkata. A única certeza é que os países ricos, e a classe rica, focarão em salvar a si mesmo, deixando de lado a solidariedade internacional e o auxílio médico. Muros, não vacinas: poderia haver uma perspectiva mais cruel para o futuro? 

Daqui a um ano, talvez olhemos com admiração para o sucesso da China em conter a pandemia, e com horror ao fracasso dos EUA. (estou fazendo aqui a heroica suposição de que a declaração da China de uma taxa de transmissão rapidamente decrescente é mais ou menos precisa). A inabilidade de nossas instituições de manter a caixa de Pandora fechada, obviamente, dificilmente é uma surpresa. Desde 2000, vimos repetidamente falhas na assistência médica de primeira linha.

A temporada de gripe de 2018, por exemplo, sobrecarregou os hospitais em todo o país, expondo a chocante escassez de leitos hospitalares após vinte anos de cortes na capacidade de abrigar pacientes (a versão do setor médico de gerenciamento de estoque just-in-time). O fechamento de hospitais privados e de caridade e a escassez de enfermagem, igualmente aplicados pela lógica do mercado, devastaram os serviços de saúde nas comunidades mais pobres e nas áreas rurais, transferindo a carga para hospitais públicos subfinanciados e instalações de VA [Associações de Veteranos]. As condições de emergência nessas instituições já são incapazes de lidar com infecções sazonais; então, como elas lidam com uma sobrecarga iminente de casos críticos?

Estamos nos estágios iniciais do equivalente médico ao furacão Katrina. Apesar de anos de avisos sobre gripe aviária e outras pandemias, os inventários de equipamentos básicos de emergência, como respiradores, não são suficientes para lidar com a inundação esperada de casos críticos. Os sindicatos de enfermeiras da Califórnia e de outros estados estão assegurando que todos entendamos os graves perigos criados por estoques inadequados de suprimentos essenciais de proteção, como máscaras faciais N95. Ainda mais vulneráveis, por serem praticamente invisíveis, são as centenas de milhares de trabalhadores de cuidados domiciliares e funcionários de casas de repouso, com salários baixos e sobrecarregados de trabalho. O setor de casas de repouso e tratamento assistido, que abrange por volta de 2,5 milhões de idosos americanos - a maioria deles no Medicare - há muito tempo é um escândalo nacional. De acordo com o New York Times, um número incrível de 380.000 pacientes em casas de repouso morre todos os anos devido à negligência das instalações de procedimentos básicos de controle de infecções. Muitos lares - particularmente nos estados do sul - acham mais barato pagar multas por violações sanitárias do que contratar pessoal adicional e fornecer treinamento adequado. Agora, como o exemplo de Seattle adverte, dezenas, talvez centenas a mais de casas de repouso se tornem hotspots de coronavírus e seus funcionários com salário mínimo escolherão racionalmente proteger suas próprias famílias ficando em casa. Nesse caso, o sistema pode entrar em colapso, e não devemos esperar que a Guarda Nacional vá tomar o posto de esvaziar comadres.

O surto expôs instantaneamente a forte divisão de classe na área da saúde: aqueles com bons planos de saúde e que podem trabalhar ou ensinar de casa estão confortavelmente isolados, desde que sigam salvaguardas prudentes. Funcionários públicos e outros grupos de trabalhadores sindicalizados com cobertura decente terão que fazer escolhas difíceis entre renda e proteção. Enquanto isso, milhões de trabalhadores com baixos salários, trabalhadores rurais, trabalhadores intermitentes sem cobertura de seguro, desempregados e sem-teto serão jogados aos lobos. Mesmo que Washington resolva o fiasco dos testes e forneça um número adequado de kits, os não segurados ainda terão que pagar médicos ou hospitais para administrar os testes. No geral, as contas médicas das famílias aumentam ao mesmo tempo em que milhões de trabalhadores estão perdendo seus empregos e seu seguro fornecido pelo empregador. Poderia haver um caso mais forte e urgente em favor do Medicare for All?

Mas a cobertura universal é apenas um primeiro passo. É decepcionante, para dizer o mínimo, que nos debates das primárias nem Sanders nem Warren tenham destacado a abdicação da indústria farmacêutica de pesquisar e desenvolver novos antibióticos e antivirais. Das 18 maiores empresas farmacêuticas, 15 abandonaram totalmente o campo. Medicamentos para o coração, tranquilizantes viciantes e tratamentos para a impotência masculina são líderes em lucros, não as defesas contra infecções hospitalares, doenças emergentes e assassinos tropicais tradicionais. Uma vacina universal para influenza - ou seja, uma vacina que tem como alvo as partes imutáveis das proteínas superficiais do vírus - é uma possibilidade há décadas, mas nunca uma prioridade lucrativa.

À medida que a revolução dos antibióticos é revertida, as doenças antigas reaparecem junto com novas infecções e os hospitais se tornam hotspots. Até Trump pode oportunisticamente opor-se a custos absurdos de receitas médicas, mas precisamos de uma visão mais ousada, que busque romper os monopólios farmacêuticos e proporcionar a produção pública de remédios para salvação geral. (Esse costumava ser o caso: durante a Segunda Guerra Mundial, o Exército recrutou Jonas Salk e outros pesquisadores para desenvolver a primeira vacina contra a gripe.) Como escrevi quinze anos atrás, em meu livro O Monstro à Nossa Porta - A Ameaça Global da Gripe Aviária:
 
O acesso a medicamentos vitais, incluindo vacinas, antibióticos e antivirais, deve ser um direito humano, universalmente disponível sem nenhum custo. Se os mercados não puderem oferecer incentivos para produzir esses medicamentos de maneira barata, os governos e organizações sem fins lucrativos devem assumir a responsabilidade por sua fabricação e distribuição. A sobrevivência dos pobres deve ser sempre considerada uma prioridade mais alta do que os lucros da indústria farmacêutica.

A pandemia atual expande o argumento: a globalização capitalista agora parece ser biologicamente insustentável na ausência de uma infraestrutura de saúde pública verdadeiramente internacional. Mas essa infraestrutura nunca existirá até que os movimentos populares quebrem o poder da indústria farmacêutica e da assistência médica com fins lucrativos.

Publicado em: http://www.esquerdadiario.com.br/Mike-Davis-sobre-o-COVID-19-O-monstro-esta-finalmente-na-porta