sábado, 14 de março de 2020

Imaginação em quarentena

Sabão & Imaginação
Allan Cob

O texto do coletivo chinês Chuang vem em boa hora. É um texto fundamental para qualquer reflexão sobre a epidemia do Covid-19 que pretenda durar mais do que o mês de Abril. O texto aborda o problema desde várias perspectivas (biológica, sanitária, ecológica, social, econômica, geográfica, migratória, política) em um nível bastante radical. Coloca em questão o nosso tempo, quando passamos a vivenciar a produção de vírus e epidemias em escala global. Em meios às péssimas condições sociais e políticas proliferadas por todo o planeta, a epidemia encontra o seu curso.

A partir das reflexões do biólogo Rob Wallace, ficamos sabendo que hoje o agronegócio é responsável por gerar ambientes apropriados para a produção em escala de novos vírus. Este é o caso por exemplo da indústria de aves que, ao criar ambientes de monocultura de animais geneticamente melhorados, em busca de um aumento de produtividade, acaba por remover todos os obstáculos imunológicos que pudessem retardar a transmissão de uma nova doença. Se um vírus tem sucesso sobre um frango produzido em escala, provavelmente terá sucesso sobre todo o seu lote. Por outro lado, a destruição ambiental em todo o planeta acaba exercendo uma pressão sobre populações de animais selvagens e facilitando a contaminação de novos vírus sobre a produção agroindustrial – o chamado salto zoonótico. Aos poucos, mas de forma inegável, a produção de alimentos sob o capitalismo mostra sua insustentabilidade, também do ponto de vista das doenças globais, produzidas nas fábricas, laboratórios de melhoramento genético e campos de plantação.

A expansão do agronegócio e a transformação da propriedade da terra em ativo financeiro está ligada historicamente ao surgimento de uma série de doenças. Nos anos 1970 o surto de Ebola no Sudão esteve ligado diretamente a pressão de industriais ingleses, que para expandir a sua produção de algodão, alteraram a dinâmica ecológica de toda uma população que vivia em florestas na região. Mais recentemente, o surto de Ebola na Guiné em 2013 esteve ligado à expansão da produção de óleo de palma, essencial para 80% dos alimentos industrializados. A expansão deste agronegócio foi responsável pela destruição florestal e pela atração desmedida de morcegos – que são reservatórios naturais para o vírus.

Do ponto de vista da habitação e da conformação das grandes cidades e suas periferias há muito que se repensar. A transformação do solo em ativo financeiro cria uma pressão sobre o preço dos imóveis e lança populações inteiras em direção às favelas, justamente os ambientes ecológicos mais precários, sujeitos à contaminações oriundas das zonas de produção agroindustrial e das epidemiais urbanas. Também do ponto de vista sanitário não há qualquer dignidade na vida de seus habitantes, no mais já bastante despojados de condições para o seu aprimoramento profissional ou intelectual.
Quando entendemos a saúde como uma mercadoria também nos sujeitamos aos ditames da mercantilização do cuidado e da cura. Está aqui a razão da formação de um setor inteiro imune à morte humana em escala industrial e que deriva seus lucros justamente da reprodução de quadros doentios, a chamada BigPharma.

O sistema capitalista impôs sobre o mundo a sua forma de sociabilidade, com a sua indústria e a sua cultura próprios, sempre atropelando as populações que encontrava no caminho e elevando o homem branco e ocidental, seu pragmatismo econômico, suas narrativas meritocráticas apodrecidas e a sua obtusa sensibilidade como símbolos do mais alto grau da civilização. Contudo, hoje, podemos enxergar que, além de ter proliferado o racismo estrutural e o moribundo patriarcado capitalista onde quer que desembarcasse, a civilização do dinheiro, não passa de uma vã ilusão de superioridade, já com os pés no abismo.

Todo o nosso modo de vida, como trabalhadores rurais ou urbanos, (para não falar daqueles que não escolhem o seu consumo, por sequer terem acesso a dinheiro ou por já viverem em quarentena, como a população carcerária ou os moradores de campos de refugiados, entre outros sujeitos que tiveram a vida anulada) está intimamente ligado ao sistema industrial de produção de alimentos. E ainda somos completamente presos a noção de terra e do solo, da saúde e habitação como mercadorias. Por trás de todo esse sistema reside uma forma de relação social que precisa ser abolida.

Essa sociedade é a sociedade do Deus-Dinheiro que sacrifica diariamente seus servos no altar no trabalho - uma atividade cujo sentido último é aumentar a centralidade do dinheiro em nossas vidas e por consequência aprofundar as suas contradições sociais. Na prática, depende diretamente do patriarcado - e de todos os expedientes machistas que ele é capaz de mover - e de todas as formas de racismo que conseguir mobilizar (xenofobia, supremacismo branco, islamofobia, anticiganismo ou antissemitismo) Estes dois pilares, o machismo e o racismo, organizam os nossos símbolos, nossa cultura e até a nossa mentalidade. A título de exemplo: a esmagadora maioria dos técnicos de enfermagem, que são os mais expostos à riscos dentro dos hospitais, é composta por mulheres e homens não-brancos. Derive essa lógica para o planeta e você terá uma dimensão da fratura.

Se não houvesse nada que pudesse ser feito para impedir que epidemias como essa surgissem, as medidas de auto-confinamento ainda poderiam ser vistas com mais empatia. Mas quando defendemos o confinamento sem nos perguntarmos sobre a origens desse problema planetário estamos cooperando para o agravamento da suas causas.

Por isso nós não podemos nos render resignados à posição de paranoicos cidadãos maníacos por álcool gel, enquanto fechamos os olhos e a imaginação para a cura do verdadeiro vírus. Ademais, não refletir sobre os limites das soluções precárias que nos apresentam agora é preparar o terreno para medidas mais drásticas que possam surgir no futuro. Afinal, se a cracolândia já foi definida como zona sanitária especial, nada impede que novos argumentos surjam para legitimar o confinamento de populações inteiras, sem dinheiro ou propriedades, por razões sanitárias. Não é à toa que a eugenia tem um apreço especial pelo sabão.

Em quarentena, nossa imaginação só faz definhar.
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Contágio Social – coronavírus, China, capitalismo tardio e o ‘mundo natural’
Coletivo Chuang
Link: http://afita.com.br/outras-fitas-contagio-social-coronavirus-china-capitalismo-tardio-e-o-mundo-natural/

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