Raoul Vaneigem
Imagem: The Taming of the Leviathan, Michael Hutter
Questionar o perigo do coronavirus é certamente um absurdo. Por
outro lado não é igualmente absurdo que uma interrupção no curso
habitual das doenças seja objeto de tal exploração mental e
desperte a arrogante incompetência que anos atrás eliminou a nuvem
de Chernobyl da França? Por isso sabemos com que facilidade o
espectro do apocalipse deixa a sua caixa para apoderar-se do primeiro
cataclismo que se produz, jogar com suas imagens do dilúvio
universal e conduzir a grade da culpa no solo estéril de Sodoma e
Gomorra.
A maldição divina tem sido um complemento útil para o poder. Ao
menos até o terremoto de Lisboa de 1755, quando o Marquês de
Pombal, amigo de Voltaire, aproveitou o terremoto para massacrar os
jesuítas, reconstruir a cidade segundo suas ideias e liquidar
alegremente seu rivais políticos através de testes
proto-stalinistas. Não insultaremos Pombal, por mais odioso que
seja, comparando seu golpe de Estado ditatorial às miseráveis
medidas que o totalitarismo democrático aplica em todo o mundo
durante a epidemia do coronavirus.
É um grande cinismo culpar a deplorável insuficiência dos recursos
médicos pela propagação do flagelo. Há décadas o bem público
tem sido minado e o setor hospitalar tem sido vítima de uma política
que favorece aos interesses financeiros as custas da saúde dos
cidadãos. Sempre há mais dinheiro para os bancos e cada vez menos
camas e cuidadores para os hospitais. Que bufonarias ocultaram por
mais tempo o fato de que esta gestão catastrófica do catastrofismo
é inerente ao capitalismo financeiro que é globalmente dominante e
que hoje em dia luta globalmente em nome da vida, do planeta e das
espécies a serem salvas.
Sem cair nesse ressurgimento do
castigo divino que é a ideia de que a Natureza se desfaz do homem
como um verme que importuna e causa dano, não é inútil recordar
que durante milênios a exploração da natureza humana e da natureza
terrestre impôs o dogma da anti-física, da anti-natureza. O livro
de Éric Postaire, “As epidemias do século XXI”, publicado em
1997, confirma os desastrosos efeitos da desnaturalização
persistente, que venho denunciando há décadas. Referindo-se a esse
drama das “vacas loucas” (predito por Rudolf Steiner já em
1920), o autor nos recorda que apesar de estarmos indefesos diante de
certas enfermidades, nos damos conta de que o próprio progresso
científico pode causá-las. Em sua petição por um enfoque
responsável sobre as epidemias e seus tratamentos, incrimina o que
prefeito, Claude Gudin, chama de “filosofia
do operador de caixa”.
Faz a seguinte pergunta: “Se
subordinamos a saúde da população às leis do lucro, ao ponto de
transformarmos os animais herbívoros em carnívoros, não corremos o
risco de provocar catástrofes que seriam fatais para a Natureza e
para a Humanidade? Os governos, como sabemos, já responderam com um
SIM unânime. Que importa que o NÃO dos interesses financeiros sigam
triunfando cinicamente?”
Precisávamos do coronavirus para
demonstrar aos mais inflexíveis que a desnaturalização por razões
de rentabilidade tem consequências desastrosas para a saúde
universal, a saúde que se gere sem desarmar uma Organização
Mundial cujas preciosas estatísticas compensam a desaparição de
hospitais públicos? Existe uma clara correlação entre o vírus e o
colapso do capitalismo global. Ao mesmo tempo, não é menos óbvio
que o que a epidemia do coronavirus está acobertando e esmagando uma
praga emocional, um medo histérico, um pânico que oculta a falta de
tratamento e perpetua o mal ao assustar o paciente. Durante as
grandes epidemiais de pragas do passado, as pessoas faziam
penitências e proclamavam sua culpa flagelando a si mesmos. Não
interessa aos gestores da desumanização mundial persuadir as
pessoas de que não há outra forma de abandonar seu miserável
destino que se está infligindo-lhes? Que tudo que restou é a
flagelação da servidão voluntária? A formidável máquina
midiática só faz repetir a velha mentira do impenetrável e
ineludível decreto celestial que de acordo com o qual o dinheiro
louco suplantou os sanguinários e caprichosos deuses do passado.
O desencadeamento da barbárie
policial contra os manifestantes pacíficos demonstrou amplamente que
a lei militar é a única coisa que funciona com eficácia. Agora
confina mulheres, homens e crianças à quarentena. Lá fora, o
caixão, dentro da televisão, a janela aberta em um mundo fechado! É
um condicionamento capaz de agravar o mal-estar existencial,
apoiando-se nas emoções desgastadas pela angústia, exacerbando a
cegueira da raiva impotente.
Mas mesmo a mentira dá lugar ao
colapso geral. A cretinização estatal e populista atingiu seus
limites. Não se pode negar que um experimento está sendo levado a
cabo. A desobediência civil está se espalhando e sonhando com
sociedades radicalmente novas porque são radicalmente humanas. A
solidariedade, liberta de sua pele de ovelha individualista aos
indivíduos que já não têm mais medo de pensar por si mesmos.
O coronavírus se converteu no
sinal revelador da bancarrota do estado. Pelo menos isso é algo que
as vítimas de confinamento forçado devem pensar. Quando publiquei
minhas 'Modestes propositions aux grévistes', alguns amigos me
disseram como era difícil recorrer à recusa coletiva, que sugeri,
de pagar impostos e taxas. Agora, no entanto, a comprovada falência
do estado corrupto é prova de um declínio econômico e social que
torna as pequenas e médias empresas, o comércio local, a renda
modesta, os agricultores familiares e até as chamadas profissões
liberais absolutamente insolventes. O colapso do Leviatã conseguiu
nos convencer a derrubá-lo mais rápido do que nossas resoluções.
O coronavírus tornou ainda
melhor. A cessação das atividades produtivas reduziu a poluição
do mundo, salva milhões de pessoas da morte programada, a natureza
respira, os golfinhos se divertem novamente na Sardenha, os canais de
Veneza purificados do turismo de massa encontram água limpa, a bolsa
de valores cai. A Espanha resolve nacionalizar hospitais privados,
como se redescobrisse a seguridade social, como se o Estado se
lembrasse do estado de bem-estar que destruiu.
Nada é dado como certo, tudo
começa. A utopia continua se arrastando a quatro patas. Abandonemos
à sua inanidade celestial os bilhões de contas e ideias vazias que
circulam acima de nossas cabeças. O importante é "fazer nosso
próprio negócio", deixando a bolha dos negócios se desfazer e
implodir. Vamos tomar cuidado com a falta de audácia e confiança em
nós mesmos!
Nosso
presente não é o confinamento que a sobrevivência nos impõe, é a
abertura a todas as possibilidades. É sob o efeito do pânico que o
Estado oligárquico é forçado a adotar medidas que ontem declararam
impossíveis. É o chamado da vida e da terra a ser restaurado que
queremos responder. Quarentena incentiva a reflexão. O confinamento
não suprime a presença da rua, ele a reinventa. Deixe-me pensar,
cum grano salis, que a insurreição da vida cotidiana tem virtudes
terapêuticas insuspeitas.
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