sexta-feira, 20 de março de 2020

O monstro finalmente à nossa porta

Mike Davis 

Aranha risonha, Odilon Redon (1891)

O COVID-19 é, finalmente, o monstro esperando na porta. Pesquisadores estão trabalhando noite e dia para caracterizar o surto, mas enfrentam três grandes desafios. Primeiramente, a contínua falta ou indisponibilidade de kits de teste acabou com toda a esperança de contenção. Além disso, está impedindo estimativas exatas de parâmetros fundamentais, tais como a taxa de redução, tamanho da população infectada e número de infecções benignas. O resultado é um caos de números.

Há, entretanto, dados mais confiáveis sobre os impactos do vírus em certos grupos em alguns países. É assustador. Itália e Inglaterra, por exemplo, reportam uma taxa de mortalidade muito maior após os 65 anos. A “gripe corona” que Trump descarta sem preocupação é um perigo sem precedentes para populações geriátricas, com um número de mortos na casa dos milhões.

Em segundo lugar, tal como gripes anuais, o vírus sofre mutações conforme cruza populações com diferentes composições etárias e imunidades. A variante com a qual americanos provavelmente serão infectados já é ligeiramente diferente daquela do surto original em Wuhan. Futuras mutações podem ser triviais, ou podem alterar o atual padrão de distribuição da doença, que ascende com a idade, com bebês e crianças pequenas mostrando baio risco de infecções sérias, enquanto octogenários enfrentam perigo mortal de pneumonia viral.

Em terceiro lugar, mesmo que o vírus se mantenha estável e não sofra grandes mutações, seu impacto em infectados abaixo dos 65 anos de idade pode ser radicalmente diferente em países pobres e em grupos de extrema pobreza. Leve em consideração a experiência global da gripe espanhola, de 1918-19, que, estima-se, matou entre 1 e 2 por cento da população mundial. Em contraste com o coronavírus, era mais mortal a jovens adultos, e isso foi comumente explicado em virtude de seus sistemas imunológicos relativamente mais fortes, que reagia de maneira exagerada à infecção liberando uma mortal “tempestade de citocinas” contra as células do pulmão. O H1N1 original notoriamente encontrou um nicho favorito em acampamentos militares e trincheiras de campos de batalha, onde ceifou jovens soldados às dezenas de milhares. O colapso da grande ofensiva alemã de primavera de 1918, assim como o resultado de guerra, chegou a ser atribuído ao fato de que os aliados, diferentemente de seu inimigo, podiam substituir exércitos doentes com recém chegadas tropas americanas.

Raramente é apreciado, no entanto, que 60% da mortalidade global ocorreu no oeste da Índia, onde as exportações de grãos para a Grã-Bretanha e práticas brutais de requisição coincidiram com uma grande seca. A escassez alimentar resultante levou milhões de pessoas pobres à beira inanição. Eles tornaram-se vítimas de uma sinergia sinistra entre desnutrição, que suprimia suas respostas imunes a infecções, e pneumonia bacteriana e viral desenfreada. Em outro caso, o Irã ocupado pelos britânicos, vários anos de seca, cólera e escassez de alimentos, seguido de um surto generalizado de malária, pré-condicionou a morte de estimadamente um quinto da população.

Esta história - especialmente as consequências desconhecidas da interação com desnutrição e infecções já existentes - deveria nos alertar que o COVID-19 deve ter um caminho diferente, e mais mortífero, nas favelas da África e do sul da Ásia. O perigo às populações mais pobres tem sido completamente ignorado por jornalistas e governos ocidentais. O único artigo que vi alega que, porque a população urbana do oeste da África é a mais jovem do mundo, a pandemia deve ter um impacto leve. Sob a luz da experiência de 1918, esta é uma extrapolação tola. Ninguém sabe o que vai acontecer no curso das próximas semanas em Lagos, Nairobi ou Kolkata. A única certeza é que os países ricos, e a classe rica, focarão em salvar a si mesmo, deixando de lado a solidariedade internacional e o auxílio médico. Muros, não vacinas: poderia haver uma perspectiva mais cruel para o futuro? 

Daqui a um ano, talvez olhemos com admiração para o sucesso da China em conter a pandemia, e com horror ao fracasso dos EUA. (estou fazendo aqui a heroica suposição de que a declaração da China de uma taxa de transmissão rapidamente decrescente é mais ou menos precisa). A inabilidade de nossas instituições de manter a caixa de Pandora fechada, obviamente, dificilmente é uma surpresa. Desde 2000, vimos repetidamente falhas na assistência médica de primeira linha.

A temporada de gripe de 2018, por exemplo, sobrecarregou os hospitais em todo o país, expondo a chocante escassez de leitos hospitalares após vinte anos de cortes na capacidade de abrigar pacientes (a versão do setor médico de gerenciamento de estoque just-in-time). O fechamento de hospitais privados e de caridade e a escassez de enfermagem, igualmente aplicados pela lógica do mercado, devastaram os serviços de saúde nas comunidades mais pobres e nas áreas rurais, transferindo a carga para hospitais públicos subfinanciados e instalações de VA [Associações de Veteranos]. As condições de emergência nessas instituições já são incapazes de lidar com infecções sazonais; então, como elas lidam com uma sobrecarga iminente de casos críticos?

Estamos nos estágios iniciais do equivalente médico ao furacão Katrina. Apesar de anos de avisos sobre gripe aviária e outras pandemias, os inventários de equipamentos básicos de emergência, como respiradores, não são suficientes para lidar com a inundação esperada de casos críticos. Os sindicatos de enfermeiras da Califórnia e de outros estados estão assegurando que todos entendamos os graves perigos criados por estoques inadequados de suprimentos essenciais de proteção, como máscaras faciais N95. Ainda mais vulneráveis, por serem praticamente invisíveis, são as centenas de milhares de trabalhadores de cuidados domiciliares e funcionários de casas de repouso, com salários baixos e sobrecarregados de trabalho. O setor de casas de repouso e tratamento assistido, que abrange por volta de 2,5 milhões de idosos americanos - a maioria deles no Medicare - há muito tempo é um escândalo nacional. De acordo com o New York Times, um número incrível de 380.000 pacientes em casas de repouso morre todos os anos devido à negligência das instalações de procedimentos básicos de controle de infecções. Muitos lares - particularmente nos estados do sul - acham mais barato pagar multas por violações sanitárias do que contratar pessoal adicional e fornecer treinamento adequado. Agora, como o exemplo de Seattle adverte, dezenas, talvez centenas a mais de casas de repouso se tornem hotspots de coronavírus e seus funcionários com salário mínimo escolherão racionalmente proteger suas próprias famílias ficando em casa. Nesse caso, o sistema pode entrar em colapso, e não devemos esperar que a Guarda Nacional vá tomar o posto de esvaziar comadres.

O surto expôs instantaneamente a forte divisão de classe na área da saúde: aqueles com bons planos de saúde e que podem trabalhar ou ensinar de casa estão confortavelmente isolados, desde que sigam salvaguardas prudentes. Funcionários públicos e outros grupos de trabalhadores sindicalizados com cobertura decente terão que fazer escolhas difíceis entre renda e proteção. Enquanto isso, milhões de trabalhadores com baixos salários, trabalhadores rurais, trabalhadores intermitentes sem cobertura de seguro, desempregados e sem-teto serão jogados aos lobos. Mesmo que Washington resolva o fiasco dos testes e forneça um número adequado de kits, os não segurados ainda terão que pagar médicos ou hospitais para administrar os testes. No geral, as contas médicas das famílias aumentam ao mesmo tempo em que milhões de trabalhadores estão perdendo seus empregos e seu seguro fornecido pelo empregador. Poderia haver um caso mais forte e urgente em favor do Medicare for All?

Mas a cobertura universal é apenas um primeiro passo. É decepcionante, para dizer o mínimo, que nos debates das primárias nem Sanders nem Warren tenham destacado a abdicação da indústria farmacêutica de pesquisar e desenvolver novos antibióticos e antivirais. Das 18 maiores empresas farmacêuticas, 15 abandonaram totalmente o campo. Medicamentos para o coração, tranquilizantes viciantes e tratamentos para a impotência masculina são líderes em lucros, não as defesas contra infecções hospitalares, doenças emergentes e assassinos tropicais tradicionais. Uma vacina universal para influenza - ou seja, uma vacina que tem como alvo as partes imutáveis das proteínas superficiais do vírus - é uma possibilidade há décadas, mas nunca uma prioridade lucrativa.

À medida que a revolução dos antibióticos é revertida, as doenças antigas reaparecem junto com novas infecções e os hospitais se tornam hotspots. Até Trump pode oportunisticamente opor-se a custos absurdos de receitas médicas, mas precisamos de uma visão mais ousada, que busque romper os monopólios farmacêuticos e proporcionar a produção pública de remédios para salvação geral. (Esse costumava ser o caso: durante a Segunda Guerra Mundial, o Exército recrutou Jonas Salk e outros pesquisadores para desenvolver a primeira vacina contra a gripe.) Como escrevi quinze anos atrás, em meu livro O Monstro à Nossa Porta - A Ameaça Global da Gripe Aviária:
 
O acesso a medicamentos vitais, incluindo vacinas, antibióticos e antivirais, deve ser um direito humano, universalmente disponível sem nenhum custo. Se os mercados não puderem oferecer incentivos para produzir esses medicamentos de maneira barata, os governos e organizações sem fins lucrativos devem assumir a responsabilidade por sua fabricação e distribuição. A sobrevivência dos pobres deve ser sempre considerada uma prioridade mais alta do que os lucros da indústria farmacêutica.

A pandemia atual expande o argumento: a globalização capitalista agora parece ser biologicamente insustentável na ausência de uma infraestrutura de saúde pública verdadeiramente internacional. Mas essa infraestrutura nunca existirá até que os movimentos populares quebrem o poder da indústria farmacêutica e da assistência médica com fins lucrativos.

Publicado em: http://www.esquerdadiario.com.br/Mike-Davis-sobre-o-COVID-19-O-monstro-esta-finalmente-na-porta

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