Aranha risonha, Odilon Redon (1891)
O COVID-19 é, finalmente, o monstro esperando na porta. Pesquisadores
estão trabalhando noite e dia para caracterizar o surto, mas enfrentam
três grandes desafios. Primeiramente, a contínua falta ou
indisponibilidade de kits de teste acabou com toda a esperança de
contenção. Além disso, está impedindo estimativas exatas de parâmetros
fundamentais, tais como a taxa de redução, tamanho da população
infectada e número de infecções benignas. O resultado é um caos de
números.
Há, entretanto, dados mais confiáveis sobre os impactos do vírus em
certos grupos em alguns países. É assustador. Itália e Inglaterra, por
exemplo, reportam uma taxa de mortalidade muito maior após os 65 anos. A
“gripe corona” que Trump descarta sem preocupação é um perigo sem
precedentes para populações geriátricas, com um número de mortos na casa
dos milhões.
Em segundo lugar, tal como gripes anuais, o vírus sofre mutações
conforme cruza populações com diferentes composições etárias e
imunidades. A variante com a qual americanos provavelmente serão
infectados já é ligeiramente diferente daquela do surto original em
Wuhan. Futuras mutações podem ser triviais, ou podem alterar o atual
padrão de distribuição da doença, que ascende com a idade, com bebês e
crianças pequenas mostrando baio risco de infecções sérias, enquanto
octogenários enfrentam perigo mortal de pneumonia viral.
Em terceiro lugar, mesmo que o vírus se mantenha estável e não sofra
grandes mutações, seu impacto em infectados abaixo dos 65 anos de idade
pode ser radicalmente diferente em países pobres e em grupos de extrema
pobreza. Leve em consideração a experiência global da gripe espanhola,
de 1918-19, que, estima-se, matou entre 1 e 2 por cento da população
mundial. Em contraste com o coronavírus, era mais mortal a jovens
adultos, e isso foi comumente explicado em virtude de seus sistemas
imunológicos relativamente mais fortes, que reagia de maneira exagerada à
infecção liberando uma mortal “tempestade de citocinas” contra as
células do pulmão. O H1N1 original notoriamente encontrou um nicho
favorito em acampamentos militares e trincheiras de campos de batalha,
onde ceifou jovens soldados às dezenas de milhares. O colapso da grande
ofensiva alemã de primavera de 1918, assim como o resultado de guerra,
chegou a ser atribuído ao fato de que os aliados, diferentemente de seu
inimigo, podiam substituir exércitos doentes com recém chegadas tropas
americanas.
Raramente é apreciado, no entanto, que 60% da mortalidade global
ocorreu no oeste da Índia, onde as exportações de grãos para a
Grã-Bretanha e práticas brutais de requisição coincidiram com uma grande
seca. A escassez alimentar resultante levou milhões de pessoas pobres à
beira inanição. Eles tornaram-se vítimas de uma sinergia sinistra entre
desnutrição, que suprimia suas respostas imunes a infecções, e
pneumonia bacteriana e viral desenfreada. Em outro caso, o Irã ocupado
pelos britânicos, vários anos de seca, cólera e escassez de alimentos,
seguido de um surto generalizado de malária, pré-condicionou a morte de
estimadamente um quinto da população.
Esta história - especialmente as consequências desconhecidas da
interação com desnutrição e infecções já existentes - deveria nos
alertar que o COVID-19 deve ter um caminho diferente, e mais mortífero,
nas favelas da África e do sul da Ásia. O perigo às populações mais
pobres tem sido completamente ignorado por jornalistas e governos
ocidentais. O único artigo que vi alega que, porque a população urbana
do oeste da África é a mais jovem do mundo, a pandemia deve ter um
impacto leve. Sob a luz da experiência de 1918, esta é uma extrapolação
tola. Ninguém sabe o que vai acontecer no curso das próximas semanas em
Lagos, Nairobi ou Kolkata. A única certeza é que os países ricos, e a
classe rica, focarão em salvar a si mesmo, deixando de lado a
solidariedade internacional e o auxílio médico. Muros, não vacinas:
poderia haver uma perspectiva mais cruel para o futuro?
Daqui a um ano, talvez olhemos com admiração para o sucesso da China
em conter a pandemia, e com horror ao fracasso dos EUA. (estou fazendo
aqui a heroica suposição de que a declaração da China de uma taxa de
transmissão rapidamente decrescente é mais ou menos precisa). A
inabilidade de nossas instituições de manter a caixa de Pandora fechada,
obviamente, dificilmente é uma surpresa. Desde 2000, vimos
repetidamente falhas na assistência médica de primeira linha.
A temporada de gripe de 2018, por exemplo, sobrecarregou os hospitais
em todo o país, expondo a chocante escassez de leitos hospitalares após
vinte anos de cortes na capacidade de abrigar pacientes (a versão do
setor médico de gerenciamento de estoque just-in-time). O fechamento de
hospitais privados e de caridade e a escassez de enfermagem, igualmente
aplicados pela lógica do mercado, devastaram os serviços de saúde nas
comunidades mais pobres e nas áreas rurais, transferindo a carga para
hospitais públicos subfinanciados e instalações de VA [Associações de
Veteranos]. As condições de emergência nessas instituições já são
incapazes de lidar com infecções sazonais; então, como elas lidam com
uma sobrecarga iminente de casos críticos?
Estamos nos estágios iniciais do equivalente médico ao furacão
Katrina. Apesar de anos de avisos sobre gripe aviária e outras
pandemias, os inventários de equipamentos básicos de emergência, como
respiradores, não são suficientes para lidar com a inundação esperada de
casos críticos. Os sindicatos de enfermeiras da Califórnia e de outros
estados estão assegurando que todos entendamos os graves perigos criados
por estoques inadequados de suprimentos essenciais de proteção, como
máscaras faciais N95. Ainda mais vulneráveis, por serem praticamente
invisíveis, são as centenas de milhares de trabalhadores de cuidados
domiciliares e funcionários de casas de repouso, com salários baixos e
sobrecarregados de trabalho. O setor de casas de repouso e tratamento
assistido, que abrange por volta de 2,5 milhões de idosos americanos - a
maioria deles no Medicare - há muito tempo é um escândalo nacional. De
acordo com o New York Times, um número incrível de 380.000 pacientes em
casas de repouso morre todos os anos devido à negligência das
instalações de procedimentos básicos de controle de infecções. Muitos
lares - particularmente nos estados do sul - acham mais barato pagar
multas por violações sanitárias do que contratar pessoal adicional e
fornecer treinamento adequado. Agora, como o exemplo de Seattle adverte,
dezenas, talvez centenas a mais de casas de repouso se tornem hotspots
de coronavírus e seus funcionários com salário mínimo escolherão
racionalmente proteger suas próprias famílias ficando em casa. Nesse
caso, o sistema pode entrar em colapso, e não devemos esperar que a
Guarda Nacional vá tomar o posto de esvaziar comadres.
O surto expôs instantaneamente a forte divisão de classe na área da
saúde: aqueles com bons planos de saúde e que podem trabalhar ou ensinar
de casa estão confortavelmente isolados, desde que sigam salvaguardas
prudentes. Funcionários públicos e outros grupos de trabalhadores
sindicalizados com cobertura decente terão que fazer escolhas difíceis
entre renda e proteção. Enquanto isso, milhões de trabalhadores com
baixos salários, trabalhadores rurais, trabalhadores intermitentes sem
cobertura de seguro, desempregados e sem-teto serão jogados aos lobos.
Mesmo que Washington resolva o fiasco dos testes e forneça um número
adequado de kits, os não segurados ainda terão que pagar médicos ou
hospitais para administrar os testes. No geral, as contas médicas das
famílias aumentam ao mesmo tempo em que milhões de trabalhadores estão
perdendo seus empregos e seu seguro fornecido pelo empregador. Poderia
haver um caso mais forte e urgente em favor do Medicare for All?
Mas a cobertura universal é apenas um primeiro passo. É
decepcionante, para dizer o mínimo, que nos debates das primárias nem
Sanders nem Warren tenham destacado a abdicação da indústria
farmacêutica de pesquisar e desenvolver novos antibióticos e antivirais.
Das 18 maiores empresas farmacêuticas, 15 abandonaram totalmente o
campo. Medicamentos para o coração, tranquilizantes viciantes e
tratamentos para a impotência masculina são líderes em lucros, não as
defesas contra infecções hospitalares, doenças emergentes e assassinos
tropicais tradicionais. Uma vacina universal para influenza - ou seja,
uma vacina que tem como alvo as partes imutáveis das proteínas
superficiais do vírus - é uma possibilidade há décadas, mas nunca uma
prioridade lucrativa.
À medida que a revolução dos antibióticos é revertida, as doenças
antigas reaparecem junto com novas infecções e os hospitais se tornam
hotspots. Até Trump pode oportunisticamente opor-se a custos absurdos de
receitas médicas, mas precisamos de uma visão mais ousada, que busque
romper os monopólios farmacêuticos e proporcionar a produção pública de
remédios para salvação geral. (Esse costumava ser o caso: durante a
Segunda Guerra Mundial, o Exército recrutou Jonas Salk e outros
pesquisadores para desenvolver a primeira vacina contra a gripe.) Como
escrevi quinze anos atrás, em meu livro O Monstro à Nossa Porta - A
Ameaça Global da Gripe Aviária:
O acesso a medicamentos vitais, incluindo vacinas, antibióticos e
antivirais, deve ser um direito humano, universalmente disponível sem
nenhum custo. Se os mercados não puderem oferecer incentivos para
produzir esses medicamentos de maneira barata, os governos e
organizações sem fins lucrativos devem assumir a responsabilidade por
sua fabricação e distribuição. A sobrevivência dos pobres deve ser
sempre considerada uma prioridade mais alta do que os lucros da
indústria farmacêutica.
A pandemia atual expande o argumento: a globalização capitalista
agora parece ser biologicamente insustentável na ausência de uma
infraestrutura de saúde pública verdadeiramente internacional. Mas essa
infraestrutura nunca existirá até que os movimentos populares quebrem o
poder da indústria farmacêutica e da assistência médica com fins
lucrativos.
Publicado em: http://www.esquerdadiario.com.br/Mike-Davis-sobre-o-COVID-19-O-monstro-esta-finalmente-na-porta
Publicado em: http://www.esquerdadiario.com.br/Mike-Davis-sobre-o-COVID-19-O-monstro-esta-finalmente-na-porta
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